FORMAS DESCONHECIDAS: DA TEORIA INICIAL E DA PRÁTICA DA ABSTRAÇÃO DE WALDEMAR CORDEIRO

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FORMS UNKNOWN: ON WALDEMAR CORDEIRO’S EARLY THEORY AND PRACTICE OF ABSTRACTION

ADELE NELSON

Professora-assistente de arte nos Estados Unidos. Doutora pelo Instituto de Belas-Artes da Universidade de Nova York, é especialista em arte do pós-guerra e em arte brasileira contemporânea. Autora de livros, artigos e ensaios. / Assistant professor of art history in the United States. She received a PhD in art history from the Institute of Fine Arts, New York University, and specializes in postwar art and contemporary art of Brazil. She is author of books, articles, and essays

 

Duas pinturas pouco conhecidas oriundas de São Paulo em 1948 ampliam nossa compreensão do papel central do seu criador, o artista e crítico brasileiro Waldemar Cordeiro, em dar forma à arte do pós-guerra de sua nação adotiva. Observando a primeira dessas pinturas, vêm à lembrança a paleta e as formas de relevos da pintora norte-americana Eva Hesse de quase duas décadas mais tarde (fig. 1)2 . As texturas peculiares e as formas alongadas e oblongas, pintadas de tons vivos de magenta, amarelo e laranja com matizes de verde e branco, estão atreladas a formas arquitetônicas ligeiramente ominosas representadas em pretos e cinza abrandados. Como nos relevos de Hesse, as formas parecidas com extremidades, as áreas de densa hachura cruzada e as formas ovoides lembram partes do corpo, embora reformuladas de modo não figurativo sobre um fundo violeta leitoso. A outra pintura foi incluída na exposição Do Figurativismo ao Abstracionismo, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP), tornando-se, assim, não só o primeiro trabalho abstrato de Cordeiro a ser exposto, mas também uma das primeiras pinturas de um artista local a ser entendida na época de sua criação como uma obra abstrata (fig. 2)3 . Empregando uma paleta igualmente dissonante, mas atraente com cores vivas justapostas aos tons escuros, nessa obra Cordeiro montou uma assemblagem de formas pontiagudas dentro de um espaço tridimensional de recesso. Nesse espaço mais retilíneo, a relação da marca com as linhas paralelas e a hachura cruzada, e as facetas do artista espanhol Pablo Picasso em seus estudos para Les Demoiselles d’Avignon, de 1907, e com as pinturas do início da década de 1940 é palpável. Assim também é o interesse de Cordeiro pela escultura construída4 , seja pelas formas de metal ou de celuloide facetadas dos artistas russos Naum Gabo e Antoine Pevsner, seja pelas esculturas de chapas de metal suspensas e dobradas do artista norteamericano Alexander Calder, provavelmente tendo visto esse último em pessoa na exposição de Calder em São Paulo, em 19485 . Na época em que fez essas pinturas, Cordeiro já estava prestes a se tornar um promotor da prática artística de vanguarda, que ele permaneceria pelo resto de sua vida. Nascido na Itália e com pai brasileiro, Cordeiro imigrou para o Brasil em 1946, com a idade de 21 anos, depois de estudar artes em Roma, tendo inicialmente trabalhado como crítico de arte6 . Em 1947, tinha participado de várias exposições coletivas em São Paulo com obras figurativas e, em 1948, feito uma viagem rápida a Roma, onde estabeleceu contato com o grupo abstrato Forma7 . Após seu retorno ao Brasil, deu uma entrevista em que promoveu a abstração, como “uma arte essencialmente ‘chiara’” e começou a criar obras abstratas8 . Vários textos e declarações públicas em favor da abstração viriam depois desse endosso, incluindo seu par de textos importantes de início de 1949, intitulados “Abstracionismo” e “Ainda o abstracionismo”9 . Nesses textos, Cordeiro foi buscar uma arte centrada nas relações formais, e criticava a representação figurativa e a ideia de expressão das emoções por meio da arte. Ele afirmou que as práticas figurativas e abstratas eram abordagens irreconciliáveis. Em um trecho claramente afirmativo, ele escreveu: “Defendemos a linguagem real da pintura que se exprime com linhas e cores que são linhas e cores e não desejam ser nem peras nem homens”10. Além da destituição da representação como um caminho válido para a arte corrente e uma ostentação retórica que teve êxito em incitar a discussão nos círculos artísticos brasileiros, esses textos mostram um artista pensando profundamente sobre a história da arte moderna de uma maneira que repercute com suas primeiras pinturas abstratas. Por exemplo, Cordeiro identificou as principais contribuições do modernismo como a “vivisecação do objeto” do cubismo e a “objetivação da cor” do impressionismo, preocupações demonstradas em sua pintura composta de formas que se desfraldavam e esticavam e estavam representadas em uma paleta decididamente não mimética 11. Os textos também revelam um artista movendo-se na velocidade de um relâmpago para manter sua prática artística em sincronia com suas ideias em evolução sobre a abstração: enquanto em suas primeiras pinturas abstratas Cordeiro trabalhou com a solução de outros artistas, seja de Picasso, ou de Calder, na escrita ele censurou essa prática como “absurda” e “contrarrevolucionária”12. Quando escreveu que a forma era um mistério para os artistas figurativos, ao mesmo tempo que significava um problema para os artistas do abstracionismo13, Cordeiro pedia a preparação do conhecimento desde a arte de vanguarda e outros campos para a invenção ou – como ele mesmo expressou em 1952 no manifesto do grupo de arte concreta Grupo Ruptura – a criação de “formas novas de princípios novos”14. Essas duas primeiras pinturas abstratas – embora certamente condenáveis aos olhos de Cordeiro logo após sua conclusão, por sua tentativa de representar o espaço tridimensional no plano bidimensional da imagem – encarnam uma qualidade fiel à obra do artista como um todo: o sentido de um compromisso incansável com a investigação e a inovação. No fim da década de 1940 e nos anos de 1950, Cordeiro traçou linhas de batalha entre o figurativo e a abstração, mas seria sua distinção entre a concepção de arte como uma forma de conhecimento em vez de uma forma de expressão que provaria a dicotomia mais duradoura e útil para o artista. Logo no início, ele via o figurativismo e a expressão como algo entrelaçado, tendo escrito que a arte figurativa necessariamente empregava a expressão e, portanto, sempre iria conter “uma forma que não poderá ser conhecida”15. Ao mesmo tempo em que Cordeiro pretendia usar essas palavras como uma acusação do tipo de arte ao qual se opunha, elas mostram a determinação singular do artista de conhecer formas, enquanto permanece engajado demonstrando um deslumbramento contagioso nas linguagens formais de uma variedade aparentemente infinita.

Two little known paintings originating in São Paulo in 1948 expand our understanding of the pivotal role of their creator, Brazilian artist and critic Waldemar Cordeiro, in shaping the postwar art of his adopted nation. One uncannily recalls the palette and forms of U.S. artist Eva Hesse’s painted reliefs of close to two decades later (fig. 1).2 Peculiar textures and spindly and oblong forms, painted in vivid magenta, yellow, and orange and tinted green and white, are tethered to slightly ominous architectonic forms rendered in muted blacks and grays. Like in Hesse’s reliefs, the extremity-like shapes, patches of dense cross-hatching, and ovoid forms recall nothing so much as body parts, although reshuffled in a non-representational manner across a milky violet background. The other was included in the landmark exhibition Do figurativismo ao abstracionismo (From Figurativism to Abstractionism) at the Museu de Arte Moderna de São Paulo (Museum of Modern Art of São Paulo), and thereby became not only the first abstract work Cordeiro exhibited, but also one of the first paintings by a local artist to be understood at the time of its creation as an abstract work (fig. 2).3 Employing a similarly discordant, but engaging palette of vivid colors juxtaposed with muddied dark tones, in this work Cordeiro arranged an assemblage of peaked forms within a recessional, three-dimensional space. In this more rectilinear space, the relationship of the mark making to Spanish artist Pablo Picasso’s facets, cross-hatching and parallel lines in his studies for Les Demoiselles d’Avignon of 1907 and paintings of the early 1940s is palpable. So too is Cordeiro’s interest in constructed sculpture,4 whether Russian artists Naum Gabo’s and Antoine Pevsner’s faceted celluloid and metal forms or U.S. artist Alexander Calder’s folded and suspended sheet metal sculptures, the latter of which he likely saw in person at Calder’s exhibition in São Paulo in 1948.5 At the time he created these paintings, Cordeiro was well on his way to becoming the firebrand promoter of cutting-edge artistic practice he would remain his entire life. Italian-born with a Brazilian father, Cordeiro immigrated to Brazil in 1946 at the age of twenty-one after studying art in Rome and initially worked as an art critic.6 By 1947 he had participated in several group exhibitions in São Paulo with figurative works and, in 1948, traveled briefly to Rome where he was in contact with the abstract group Forma (Form).7 Upon his return to Brazil, he gave an interview in which he promoted abstraction, as “an essentially ‘clear’ art,” and began creating abstract works.8 Numerous texts and public statements in favor of abstraction would follow this endorsement, including his pair of important texts from early 1949 entitled “Abstracionismo” (Abstractionism) and “Ainda o abstracionismo” (Still Abstractionism).9

In these texts, Cordeiro called for an art focused on formal relationships and criticized figuration and the notion of expressing emotions in art. He asserted that representational and abstract practices were irreconcilable approaches to art making. In a passage of typical matter-of-factness, he wrote, “We defend the real language of painting that expresses itself with lines and colors that are lines and colors and that do not wish to be either pears or men.”10 Beyond the dismissal of representation as a valid path for current art and a pitch perfect rhetorical flare that successfully incited debate in Brazilian artistic circles, these texts show an artist thinking deeply about the history of modern art in a manner that resonates with his early abstract paintings. For example, he identified the key contributions of modernism as cubism’s “vivisection of the object” and impressionism’s “objectification of color,” concerns evidenced in his paintings composed of unfurling and splayed forms and rendered in a decidedly non-mimetic palette.11 The texts also reveal an artist moving at lightning pace to keep his artistic practice in sync with his evolving ideas about abstraction: where in his first abstract paintings Cordeiro was working through other artist’s solutions, whether Picasso’s or Calder’s, in writing he denounced just such a practice as “absurd” and “counter-revolutionary” because it constituted re-tracing innovations which should instead be leaping off points.12 When he wrote that form was a mystery for figurative artists while it was a problem for abstract artists,13 Cordeiro was calling for the marshalling of knowledge from avant-garde art and other fields to invent or – as he expressed in the 1952 manifesto of the Concrete art group Grupo Ruptura (Rupture Group) – to “create new forms out of new principles.”14 The two early abstract paintings – though surely condemnable in Cordeiro’s eyes soon after their completion for their attempt to represent three-dimensional space on the two-dimensional picture plane – embody a quality true to the artist’s oeuvre as a whole: the sense of an untiring commitment to inquiry and innovation. In the late 1940s and 1950s Cordeiro drew battle lines between figuration and abstraction, but it would be his distinction between the conception of art as a form of knowledge rather than as a form of expression that would prove the more lasting and useful dichotomy for the artist. Early on, he viewed figuration and expression as intertwined, writing that figurative art necessarily employs expression and therefore will always contain “a form that cannot be known.”15 While Cordeiro intended those words as an indictment of the type of art he opposed, they point to the artist’s singular determination to know forms while engaging over the course of his career – with an infectious wonderment – formal languages of a seemingly infinite variety.

WALDEMAR CORDEIRO E O MODERNISMO DE RUPTURA NO BRASIL

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WALDEMAR CORDEIRO AND THE MODERNISTIC RUPTURE IN BRAZIL

FERNANDO COCCHIARALE

Curador independente. Entre as curadorias, está a exposição Waldemar Cordeiro – Fantasia Exata, realizada pelo Itaú Cultural em 2013 e que origina este catálogo. É também professor, doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de livros, artigos, textos e resenhas no Brasil e no exterior. / Independent curator. Among his curatorship projects, is the exhibition Waldemar Cordeiro – Exact Fantasy, organized by Itaú Cultural in 2013 and that serves as the basis for this catalog. He is also professor, holds a doctor’s degree from the Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), published books, articles, essays, and reviews in Brazil and abroad.

 

Principal mentor e porta-voz do Grupo Ruptura – núcleo pioneiro do concretismo paulista –, Waldemar Cordeiro (1925-1973) foi também redator do manifesto, lançado por ocasião de sua primeira mostra coletiva, inaugurada no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/ SP) em 9 de dezembro de 1952. Conciso, o texto listava princípios espaciais, cromáticos e formais que, com rigor inédito na história da arte brasileira, referenciavam o sentido e o âmbito da ruptura proposta por seus signatários. Não era, porém, objetivo do manifesto esclarecer tópicos específicos da ruptura plástico-formal preconizada pelos concretistas de São Paulo – Waldemar Cordeiro, Anatol Wladyslaw (1913-2004), Geraldo de Barros (1923-1998), Kazmer Féjer (1923- 1989), Leopoldo Haar (1910-1954), Lothar Charoux (1912-1987) e Luiz Sacilotto (1924-2003). Mais político que teórico, o Ruptura visava primeiramente suscitar questões gerais que chamassem atenção para o lançamento do grupo num contexto cultural acanhado e totalmente refratário à renovação das linguagens artísticas em curso no país. No final de abril de 1949, por ocasião da inauguração da sede da Sul América Terrestres, Marítimos e Acidentes (Satma), no Rio de Janeiro, foi montada a exposição Do Figurativismo ao Abstracionismo1 que, cerca de dois meses antes, inaugurara o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP). Concebida e organizada pelo crítico belga Léon Degand (1907-1958), admirador do abstracionismo e primeiro diretor do MAM paulista, a exposição causou polêmica. O catálogo da mostra no Rio de Janeiro foi o próprio boletim mensal da seguradora, em que foram publicados diversos artigos que mapeavam o debate travado entre defensores da renovação abstracionista e partidários da tradição figurativa, que àquela resistiam. Entre os textos desfavoráveis à renovação em curso, destacou-se Realismo e Abstracionismo, de Di Cavalcanti (1897-1976), cuja violenta rejeição à arte abstrato-concreta coincidia com opiniões arraigadas não só em parte considerável dos intelectuais do período, mas também no senso comum.

O que acho, porém, vital é fugir do Abstracionismo. A obra de arte dos abstracionistas tipo Kandinsky, Klee, Mondrian, Arp, Calder é uma especialização estéril. Esses artistas constroem um mundozinho ampliado, perdido em cada fragmento das coisas reais: são visões monstruosas de resíduos amebianos ou atômicos revelados por microscópios de cérebros doentios (DI CAVALCANTI, Realismo e abstracionismo. Boletim Satma, Rio de Janeiro, n. 23, 1949, p. 47).

Nesse contexto adverso, o discurso subjacente ao manifesto de lançamento do Grupo Ruptura, em 1952, “longe de construir um tratado teórico e mesmo um estudo histórico” (CORDEIRO, Waldemar. In: artigo Ruptura, veja página 210), parecia então mais preocupado em enumerar e adjetivar adversários artísticos, com base em corte conceitualmente estabelecido entre o velho e o novo, do que em esclarecer os princípios fundamentais da ruptura proposta. Listados no manifesto, seus adversários integravam tendências, cuja aparente modernidade ocultava a incompreensão do novo, posto que produziam “formas novas de princípios velhos”. Tais tendências compreendiam “todas as variedades e hibridações do naturalismo; a mera negação do naturalismo, isto é, o naturalismo ‘errado’ das crianças, dos loucos, dos ‘primitivos’, dos expressionistas, dos surrealistas etc. e o não figurativismo hedonista, produto do gosto gratuito, que busca a mera excitação do prazer ou do desprazer” (2) Havia nessa variada enumeração um dado dissonante da lógica dos diversos das vanguardas europeias que inspiravam o grupo. O rompimento proposto no manifesto paulistano abrangia período histórico incomparavelmente maior que o de seus similares europeus, já que não impugnava somente seu adversário contemporâneo (neste caso, o abstracionismo informal), mas todas as tendências figurativas que haviam dominado, por séculos, a arte  brasileira. Tal simultaneidade de tendências – de períodos históricos diversos −, com as quais então se rompia num único manifesto, revelava os limites de nosso modernismo inicial que, ao contrário de seus similares do velho continente, não promoveu corte, plástico ou discursivo, com os princípios da arte clássica, nem gerou qualquer ismo − fator que emprestava sentido radical, inédito e único, à ruptura capitaneada por Cordeiro. Logo que a repercussão da mostra e do manifesto tornouse conhecida de todos, no entanto, sobretudo quanto às objeções críticas de que foi alvo, Waldemar Cordeiro aprofundou o significado teórico e visual da nova arte em artigo homônimo (Ruptura, ver página 210), publicado no Correio Paulistano de 11 de janeiro de 1953. Ainda que o artigo objetivasse desarticular as especulações conservadoras de Sérgio Milliet (1898-1966) a respeito do manifesto e da exposição do grupo, sua fundamentação terminou por transcender o contexto específico da réplica ao crítico paulistano, para definir conceito geral de ruptura da pintura concreta. Em nota publicada em O Estado de S. Paulo de 13 de dezembro de 1952, Milliet questionara se a noção de ruptura era de fato aplicável à arte ou apenas efeito do radicalismo retórico do manifesto. Na contundente resposta de Cordeiro à nota de Milliet, já pulsavam tanto a consistência teórica do artista quanto a potência crítica e demolidora da estratégia discursiva que o consagrou como um dos maiores polemistas (senão o maior) da arte brasileira nos anos 1950 e 1960. A importância do Ruptura não se restringiu apenas a revelar um artista e debatedor incansável. O interesse pelo referido artigo resultou, particularmente, em algo menos prosaico e mais relevante: o começo da caminhada de Cordeiro em direção ao assentamento teórico-metodológico de suas ideias, o domínio poético de seu processo de trabalho e de sua estratégia políticodiscursiva. O texto-resposta a Milliet tornou-se, por tais razões, emblema de inflexão inédita na produção visual brasileira e, simultaneamente, referência privilegiada do sentido − conceitual e prático − da ruptura pretendida pelos novos princípios da arte concreta e suas reverberações na obra de Waldemar Cordeiro da década de 1950.

A contra-argumentação à nota do crítico Milliet, que prenunciava o método posteriormente adotado pelo artista na polêmica com Ferreira Gullar (1930), porta-voz do concretismo carioca, pode ser resumida como se segue:

1) identificação da pedra fundamental da ideia que embasava o texto do crítico: a negação teórica e prática de rupturas no âmbito da história da arte;

2) análise concisa do pensamento de Milliet, exposto cerca de três meses antes em texto de apresentação da exposição de pinturas de Cícero Dias, em que o crítico paulista procura demonstrar que “o Cícero Dias das telas abstratas não difere do autor que conhecemos pintando ingênuas naturezas-mortas e cenas do Nordeste. São os mesmos verdes e amarelos de outrora, e são as mesmas formas e composições [...]”. Essa afirmação decorria da ideia, professada por Milliet e pelo senso comum, de que a arte possuía valores e leis permanentes sendo, portanto, infensa a rupturas;

3) explicitação da ruptura com a tradição figurativa por meio do confronto de princípios espaciais, cromáticos e rítmicos da nova pintura com velhos princípios do naturalismo renascentista e seus desdobramentos posteriores. Waldemar opunha-se diametralmente aos velhos princípios da pintura clássica, com base nos princípios mais radicais da pintura moderna, em que a construção espacial bidimensional assumia a concretude e a integridade do plano pictórico.

NOVO, RUPTURA E MODERNIZAÇÃO

Consoante a lógica e a dinâmica − inovação/obsolescência/inovação... −, instaurada pelo desenvolvimento tecnológico,

pela produção industrial e a permanente expansão do mercado, a sociedade capitalista e moderna revogou o antigo apreço comunitário pela tradição (permanência, eternidade), em nome de um valor até então inédito, que se tornou dominante a partir da Revolução Industrial: a busca contínua do novo em todas as áreas da produção tecnológico-econômica, nas práticas teóricas, políticas e no âmbito da produção artística − que aqui nos interessa diretamente. Só no mundo burguês a noção de ruptura desempenhou papel fundador e operatório, tornando-se poderoso divisor de águas dos discursos que opunham modernidade e tradição. Se sua matriz econômica (o corte com o passado promovido pela Revolução Industrial) teve por epicentro a Grã-Bretanha, e a revolução filosófica, a Alemanha, coube à França a fundação político-ideológica do mundo moderno mediante ruptura exemplar e

emblemática representada pela Revolução Francesa (1789). Foi exclusivamente a nova sociedade, emersa desses princípios e eventos, que também se dispôs a examinar a própria origem por meio das ciências sociais e humanas (história, economia, psicologia, antropologia e sociologia, exceto a renovação autocrítica da ancestral filosofia), surgidas do impulso que, a partir do século XVIII, havia contraposto o pensamento laico às narrativas dogmático-religiosas sobre a criação do mundo ou sobre a origem mítica de diferentes etnias e comunidades. Ponto de partida dos repertórios ideológico-discursivos modernos, a noção de ruptura (com o passado) também se entranhou nas novas disciplinas crítico-especulativas, voltadas para a produção de conhecimentos específicos a respeito do homem e de sua vida sociocultural. Assim como o enraizamento da modernidade, nas mais diversas áreas do pensamento, da ação e da sensibilidade, fora operacionalizado por discursos de ruptura, os novos conhecimentos dela decorrentes – centrados, portanto, não mais nos primórdios da modernidade, mas na dinâmica (ou na dialética) que a movia – abandonaram a ênfase na explícita ruptura fundadora para privilegiar esfera análoga, em que separações e polarizações, passíveis de provocar rupturas, tornaram-se pressupostos intelectuais e normativos dos discursos direcionados para o estudo de fluxos históricos e cotidianos. Entre as mais conhecidas dessas separações polarizadas estão aquelas estabelecidas entre: habilidade manual e maquinismo, artesanato e indústria, sujeito e objeto, ciência e opinião (a noção bachelardiana de corte epistemológico, por exemplo), público (cidadão) e privado (indivíduo). Também merecem destaque a luta de classes e a consequente ruptura representada pela revolução socialista (Marx); a oposição entre cidade e campo; as diferenciações entre natureza e cultura (fundadoras dos primeiros discursos antropológicos); inconsciente e razão (Freud); arte e artesanato; arte e vida (autonomia da arte); figuração e abstração; tradição e renovação. Caracterizada por rupturas espaciais, plástico-formais, cromáticas e semânticas, periodicamente propostas pelas vanguardas históricas, a experiência pioneira europeia − marcada específica, mas não exclusivamente, pela experiência francesa (Escola de Paris) − tornou-se “paradigma universal” do modernismo. Surgidas na Europa entre o final do século XIX e o término da Segunda Guerra Mundial, na metade do século XX, as vanguardas, ainda que muito diversas, compartilhavam um objetivo comum essencial: a busca pela renovação permanente de linguagens, o apreço por atitudes e posições polêmicas − entendidas como táticas para a difusão de suas ideias − e a valorização da cisão com o passado. Sua emergência tardia no Brasil do pósguerra confrontou-se imediatamente com o modernismo brasileiro, então hegemônico, e não só mobilizou a militância artístico-discursiva de Waldemar Cordeiro, como também norteou sua própria obra durante os anos 1950.

MODERNIDADES ALTERNATIVAS AO MODELO EUROPEU

Apesar de a hegemonia do paradigma franco-europeu ter eclipsado, até a Segunda Guerra Mundial, muitos outros exemplos de modernização, tanto em países latino-americanos quanto em europeus e asiáticos, hoje é possível repensar o significado teórico, artístico e político dessas experiências dissonantes da modernidade, graças à distância histórica que nos separa daquele período. A mais bem-sucedida dessas experiências foi a modernização econômica do Japão, promovida, sem ruptura política, pelo visionário imperador Meiji, cujo reinado durou 45 anos (1867- 1912). Nesse período, o país conseguiu conciliar a permanência do regime imperial com as reformas agrária e industrial, por meio de revolução dos processos tradicionais de educação, viabilizada por extraordinário programa de formação de técnicos e cientistas japoneses na Inglaterra e nos Estados Unidos. Na contramão do processo japonês, o contexto histórico brasileiro apontou para lenta, gradual, mas incompleta transição para a modernidade, especialmente no que se refere à inclusão social e à universalização da cidadania. A súbita mudança do regime imperial brasileiro (1822-1889) para o republicano, portanto, longe de representar ruptura com a estrutura econômica do antigo regime, encobriu a manutenção da velha ordem agroexportadora, que, abalada pela abolição da escravatura (1888), encontrou no imigrante um substituto da mão de obra escrava:

Não se pense na imigração como um processo que, por substituir a escravidão, ou mesmo por se opor a ela, já que introduz o trabalho assalariado, merece lugar tão doce, na história, quanto amargo é o da escravidão [...]. Muitos fazendeiros mudaram de pessoal nos seus domínios. Mas não mudaram de métodos. Não eram incomuns os casos de espancamento, nem aqueles em que os imigrantes eram alojados nas antigas senzalas (TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da solidão: uma história de São Paulo das origens a 1900. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2003, p. 401-402).

Havia, porém, outro grupo de imigrantes, diverso do contingente majoritário daqueles que vieram ao Brasil para fugir à miséria. Era formado por número reduzido de estrangeiros, que, desde o final do século XIX, aqui chegaram em busca das oportunidades criadas por uma economia em expansão. Alguns deles, principalmente italianos, tornaram-se prósperos comerciantes e pioneiros da industrialização na capital paulista, destino semelhante ao de alguns poderosos e tradicionais fazendeiros da região, que, à mesma época, desviaram parte de seus capitais para a indústria. A convergência de interesses econômicos de imigrantes ricos e de integrantes da antiga aristocracia rural gerou uma das primeiras concentrações fabris do país e representou passo decisivo para a integração sociocultural entre brasileiros e imigrantes. Algumas décadas foram necessárias, entretanto, para que muitos daqueles imigrantes − qualificados para ofícios urbanos, mas contratualmente comprometidos a trabalhar no campo − fossem real e amplamente absorvidos pelo vertiginoso crescimento urbano de São Paulo e de outras poucas metrópoles do país. Ao final da Segunda Guerra Mundial o ciclo imigratório massivo, em curso permanente desde o final do século XIX, já havia arrefecido. Porém, o fim do conflito e a destruição de número considerável de países do continente europeu fizeram com que muitos de seus profissionais tecnicamente preparados e com perfil sociocultural semelhante ao de Waldemar Cordeiro se deslocassem para o Brasil − parte dos artistas do Grupo Ruptura era, inclusive, formada por estrangeiros dessa leva.

PÓS-COLONIALISMO E DESCONSTRUÇÃO DE PARADIGMAS EURO-AMERICANOS

Processos de modernização efetivamente fundados no paradigma europeu da ruptura foram raríssimos − exceções e não regra −, mormente se considerarmos as experiências de modernização inconclusas da América Latina, da Ásia e da África. Tal evidência já seria suficiente para problematizar a noção e o valor da ruptura como exclusivo critério de fundação da modernidade. A crítica à universalização desse modelo, no entanto, foi também politizada por setores do meio acadêmico internacional e nacional. Em caminhos abertos pelo pós-estruturalismo europeu, trilharam posteriormente intelectuais como Arjun Appadurai (1949), Edward Said (1935-2003), Gayatri Spivak (1942), Homi K. Bhabha (1949) e Stuart Hall (1932-2014), que, originários de países periféricos do Oriente Médio e da Ásia, substituíram a noção de Terceiro Mundo pela de Pós-Colonialismo. Ligados aos estudos culturais e à teoria crítica, esses intelectuais conseguiram plasmar seu pensamento − construído a

partir da alteridade de suas experiências, sistematicamente depreciadas pelo colonizador – no coração acadêmico de algumas das universidades mais importantes do Ocidente, que, pressionadas pelo crescente teor multicultural de sociedades tais como a britânica e a norte-americana, necessitavam de canais de comunicação com o “outro cultural”. O pensamento pós- colonialista associou, teórica e criticamente, alguns pressupostos cognitivos do pensamento ocidental às ideologias de dominação, fundadas na suposta superioridade étnico-racial, cultural-cognitiva e religiosa do colonizador em relação ao colonizado. Esse pensamento mostrou, enfim, como a universalidade teórico-conceitual reivindicada pelos discursos das ciências sociais e humanas (europeias e norte-americanas) integrava a mesma lógica e o mesmo poder que implantara mundialmente a dominação colonial/imperialista. No entanto, a atual impugnação teórica e política de paradigmas europeus (como ruptura e universalidade) não pode ser simplesmente aplicada a contextos sociais que, no passado, inversamente, demandavam a implantação de tais paradigmas no Brasil. Seus nexos internos estavam articulados de maneira tão diversa daqueles nexos que hoje situam a defesa da pluralidade cultural num patamar fundamental das demandas políticas da atualidade, que não é possível invalidar o papel então radicalmente libertador e progressista do paradigma da ruptura na sociedade brasileira. Proposta por setores artísticos e intelectuais emergidos da redemocratização ocorrida em 1945, sua implantação parecia ser então a única alternativa viável para a promoção do desenvolvimento do país, a superação dos arcaicos métodos de gestão legados pela monocultura, e, até mesmo, do figurativismo modernista. Essas ideias se tornaram referências importantes não só do discurso explícito de Waldemar Cordeiro e dos artistas concretos de São Paulo (Grupo Ruptura), mas também da prática e do pensamento experimentais do Grupo Frente, Rio de Janeiro, embrião do neoconcretismo fundado em 1959. A afinidade dos repertórios gerais dessas primeiras vanguardas brasileiras com aqueles das vanguardas europeias não era, de modo algum, considerada pelos jovens artistas e críticos, que aqui então as defendiam, qual rendição colonizada às ideias e questões da arte internacional. Eles não tinham, portanto, intenção de introduzir (apenas por introduzir) uma atualização superficial e tópica, por meio da adesão acrítica a soluções importadas, sem qualquer compromisso com a situação local que os motivava. As questões por eles propostas eram de outra ordem, mais profunda e radical: romper com traços do passado colonial, que, ainda vigentes, impediam a modernização efetiva da arte brasileira e, em suma, do próprio país. Seus projetos pretendiam contribuir, intelectual, política e artisticamente, para a superação desses traços arcaicos, a partir de modernização concebida e voltada para o bem-estar econômico-social (industrialização, planejamento urbano e habitacional, transporte, educação, saúde etc.) do povo brasileiro.

RUPTURA E REFUNDAÇÃO DO MODERNISMO BRASILEIRO

Para o grupo paulistano, era urgente refundar, ainda que tardiamente, nosso modernismo a partir de ruptura ampla − de ordem espacial, cromática e rítmica − não só com toda a arte, até então produzida, mas também com a abstração informal, em franca expansão no pós-guerra europeu,  americano,  sulamericano  e  brasileiro  (1945). O grupo tinha como única saída questionar a folclorização estrita a que a produção artística do país havia sido confinada tanto pelos discursos produzidos nos centros mundiais hegemônicos, europeus e norte-americanos, quanto, em outra medida, pelos discursos nacionais e regionais de parte dos defensores do modernismo figurativo brasileiro. Em entrevista concedida pouco antes de seu falecimento, o crítico Mário Pedrosa (1900-1981) destacou tal necessidade de afirmação da “nossa formação cultural”, no contexto otimista emodernizador do pós-guerra brasileiro, cujo ápice foi a inauguração de Brasília, em 1960, pelo presidente Juscelino Kubitschek (3 )

O predomínio do concretismo se deve à vitória da arte na arquitetura moderna. O que eu sustentava é que ele era um movimento antirromântico. O Brasil é um país romântico por excelência. O concretismo era um movimento que precisava de uma disciplina, e o Brasil também precisava de uma disciplina, de um certo caráter, ordem, para educar o povo. Acho que o concretismo foi importante neste ponto. O europeu não se interessava pela nossa formação cultural, eles queriam sensações agradáveis, papagaios, exotismo e, naquele momento, havia uma luta pela afirmação cultural do país [Entrevista com Mário Pedrosa. In: COCCHIARALE, Fernando; GEIGER, Anna Bella. Abstracionismo geométrico e informal: a vanguarda brasileira nos anos cinquenta. Rio de Janeiro: Funarte/Minc, 1987- 2004 (reimpressão), p. 106].

A defesa da disciplina inerente ao concretismo feita por Mário Pedrosa tinha por fundamento a “vitória da arte na arquitetura moderna”. O grande crítico de arte brasileiro indiretamente apontava para outra ruptura vertiginosa4 , ocorrida sem alardes, embora semelhante em radicalidade àquela proposta no manifesto lançado em 1952 pelo grupo de artistas concretos de São Paulo: em 1928, o arquiteto de origem ucraniana Gregori Warchavchik (1896-1972), naturalizado brasileiro e aqui radicado desde 1923, projetou na capital paulista a primeira casa modernista construída no país. Ao final dos anos 1920, Rino Levi (1901-1965), arquiteto brasileiro formado na Itália, também construiu residências modernas nesta capital. Foi no Rio de Janeiro, no entanto, que a partir de 1930 surgiu a primeira geração de arquitetos modernos do país. Em 1931, Warchavchik foi convidado por Lúcio Costa (1902-1998) – então recentemente convertido aos preceitos da arquitetura moderna – para lecionar arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes. Costa havia sido nomeado para a direção da instituição logo após a Revolução de 1930 e, em seu breve mandato (1930-1931), começou a introduzir o modernismo em cursos complementares ao currículo da escola. A permanência de Gregori na Capital Federal nesse período contribuiu para a consolidação da primeira geração de arquitetos brasileiros modernos integrada por Affonso Eduardo Reidy (1909-1964), Jorge Moreira (1904-1992), Luiz Nunes (1907-1937) − um dos introdutores da arquitetura moderna em Pernambuco −, Ernâni Vasconcelos (1912-1988), Marcelo Roberto (1908-1964) − ao qual posteriormente se associaram seus irmãos Milton (1914-1953) e Maurício (1921- 1996) − e Oscar Niemeyer (1909-2012), que conheceu Warchavchik no escritório de Lúcio Costa, no Rio de Janeiro, onde ambos trabalhavam. Em São Paulo, ainda que a arquitetura moderna não tivesse inicialmente experimentado expansão significativa − provavelmente porque tanto a formação de seus arquitetos quanto a aprovação de projetos para a construção de edifícios públicos na capital paulista dependiam de engenheiros construtores ligados aos repertórios da arquitetura eclética, hegemônica no Brasil das primeiras décadas do século passado − destacavam-se tanto os pioneiros Warchavchik e Levi quanto o emblemático Flávio de Carvalho (1899-1973) e Vilanova Artigas (1915-1985), mais próximo aos repertórios de Frank Lloyd Wright (1867-1959). As obras desses arquitetos igualmente reiteram, a partir de referências diversas das corbusianas, majoritárias na escola carioca, a precedência da ruptura arquitetônica sobre a ruptura nas artes visuais, proposta em 1952 pelos concretistas do Ruptura. Talvez isso explique por que outras frentes da produção de Waldemar Cordeiro, contíguas ao seu trabalho artístico − tais como o paisagismo e o planejamento urbano, aos quais o artista também se dedicava desde 1954 −, não exigiram dele a elaboração de um discurso de ruptura tão radical e contundente quanto o que anunciou a implantação do concretismo, visto que tal tarefa já havia sido cumprida, teórica e praticamente, cerca de duas décadas antes pelos primeiros arquitetos modernistas brasileiros.

AS PRIMEIRAS VANGUARDAS MODERNAS BRASILEIRAS

Ao final da década de 1940, a arte moderna brasileira ainda se debatia em torno de questões estranhas àquelas especificamente visuais investigadas pela arte ocidental desde o final do século XIX. Centrado em temas nacionais, o realismo social de esquerda, de grande penetração cultural no país entre os anos 1930 e o imediato pós-guerra, restringiu sua radicalidade à esfera temática, sem propor estilo ou avançar em revolução plásticoformal análoga à promovida pelas vanguardas europeias. Ainda assim, a cena artística que emergiu do pós-guerra brasileiro havia amadurecido o bastante para contrapor ao modernismo hegemônico as primeiras vanguardas surgidas no país. Algumas sementes dessa transformação começaram a germinar na segunda metade dos anos 1930, na iminência da Segunda Guerra Mundial quando, para escapar ao conflito, chegaram ao país artistas estrangeiros como Tadashi Kaminagai (1899-1982), Axl Leskoschek (1889-1975), Arpad Szènes (1897-1985) e Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992). Eles trouxeram outras e novas referências para o modernismo brasileiro e desempenharam papel importante na formação de muitos de nossos artistas abstrato-concretos: Flávio Shiró (1928) e Manabu Mabe (1924-1997) foram alunos de Kaminagai; Almir Mavignier (1925) foi aluno de Szènes; Décio Vieira (1922-1988), Fayga Ostrower (1920-2001) e Ivan Serpa (1923-1973) estudaram com Leskoschek. Com a derrota do Eixo, retornaram ao país os exilados do Estado Novo. Para as artes foi vital, por exemplo, a volta, em 1945, de Mário Pedrosa (1900-1981), ex-trotskista e dissidente do stalinismo, aguerrido defensor das poéticas abstrato-concretas que floresceram no Brasil a partir de 1948. Suas ideias se tornaram públicas na seção de artes plásticas do Correio da Manhã, do qual foi colaborador de 1947 até 1952; na Tribuna da Imprensa, entre

1950 e 1954; e, posteriormente, de 1957 a 1971, no Jornal do Brasil. Colaborou ainda com a Folha de S.Paulo. As poucas galerias de arte então existentes, comumente de vida curta e concentradas nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, não configuravam sequer um arremedo de mercado. A falta de publicações especializadas, a formação incipiente de profissionais ligados às atividades artísticas, a carência de materiais de trabalho e de um mercado de arte efetivo e dinâmico eram entraves então insuperáveis para a consolidação do modernismo brasileiro. Foi a fundação do Museu de Arte de São Paulo (Masp, 1947), de Arte Moderna do Rio de Janeiro e de Arte Moderna de São Paulo (1948) e, finalmente, da Bienal Internacional de São Paulo (1951), que possibilitou a difusão permanente de novas tendências da arte. Ao ampliarem as possibilidades de exposição da arte moderna nacional e internacional entre nós, tais instituições cumpriram papel decisivo na formação do público e contribuíram para a informação permanente dos artistas e críticos que então despontavam. Logo após a Segunda Guerra Mundial (1948/1949), constituíram-se em São Paulo e no Rio de Janeiro os primeiros grupos de artistas abstrato-concretos do Brasil. Cerca de três anos antes, Waldemar Cordeiro, aos 21 anos, filho de pai brasileiro e mãe italiana, nascido em Roma, mas registrado na embaixada do Brasil, optou pela nacionalidade brasileira. Vinha tentar a vida num lugar de oportunidades em expansão, diferentemente da Europa, imersa na crise do pós-guerra. Sua opção o levou a viajar pela primeira vez ao seu país desconhecido e ao encontro do pai que jamais vira. Criado durante o regime fascista numa família romana abastada, ainda adolescente costumava consultar livros de anatomia e visitar com frequência a Capela Sistina para observar as pinturas de Michelangelo (1474-1564). Por esse tempo frequentou ocasionalmente a Accademia delle Belle Arti e o ateliê do pintor De Simone. Quando as tropas angloamericanas tomaram Roma, em 1944, Waldemar e alguns amigos – que, como ele, apreciavam e produziam arte – encontravam-se regularmente num apartamento na Piazza Barberini para produzir obras e debater questões estéticas. Cordeiro era simpatizante do Partido Comunista Italiano e foi influenciado, como artista e intelectual, pelo marxismo de Antonio Gramsci (1891-1937), que, ao analisar a função política da cultura e da ideologia, e o papel do “intelectual orgânico” de uma classe social específica para a construção de nova ordem social, marcou decisivamente a visão de mundo e a militância intelectual do artista. De acordo com depoimento escrito, mas não publicado, de Umberto e Simonetta Cordeiro, respectivamente irmão e sobrinha do artista, o período fascista foi

[...] muito difícil para Waldemar pois chocava-se com suas ideias contra a violência e também pela resistência a apresentar-se ao chamado do serviço militar, obrigatório para rapazes com dezoito anos [...]. Dos 20 anos em diante, seu círculo de amizades no campo cultural se alargou com o conhecimento de Federico Fellini, ainda anônimo, Turcato, Santoro, Prampolini, Gonzaga e outros. Nesse período a sua pintura começou a ter a evolução para o campo do cubismo e abstracionismo.

Embora legalmente brasileiro, do ponto de vista de sua formação cultural e experiência de vida, o jovem recém-chegado era quase um imigrante italiano. Consequentemente, os hábitos cotidianos nativos e as tradições mítico-rurais brasileiras, assimilados por nossa modernidade e inseparáveis do imaginário brasileiro infantojuvenil e adulto, não possuíam significativo apelo cultural para Cordeiro. Tais motivos talvez o tenham levado a mergulhar radicalmente num projeto de modernidade fundado na ruptura, oposto à tradição brasileira das “transições sem traumas”, manifesta em quase toda a nossa vida pública e privada. Essas circunstâncias fizeram de Waldemar Cordeiro um artista único: tratavase de um brasileiro naturalmente em ruptura com ideologias da brasilidade, nascidas entre a fazenda e o arranha-céu.

Cordeiro chegou à capital paulista em 1946 e logo começou a trabalhar como crítico de arte e caricaturista no Diário Latino, publicado em italiano. Em 1947, na exposição 19 Pintores, na Galeria Prestes Maia, conheceu Geraldo de Barros (1923-1998), Luis Sacilotto (1924-2003) e Lothar Charoux (1912-1987), seus parceiros na futura criação do Grupo Ruptura (1952). Nesse mesmo ano, retornou a Roma e em 1948 fixou-se definitivamente em São Paulo. Por essa época, participou da fundação da filial brasileira do Art Club Internacional − voltada para a organização de exposições e o debate de novas questões da arte −, do qual se tornou vice-presidente. Em 1948, no Rio de Janeiro, influenciados por Mário Pedrosa, os jovens Abraham Palatnik (1928), Almir Mavignier (1925) e Ivan Serpa (1923-1973) também formaram núcleo abstrato-concreto, que, contudo, não floresceu como movimento artístico. Palatnik chegou a participar do Grupo Frente (criado em 1953), mas desenvolveu seu trabalho pioneiro na arte cinética de maneira independente. Mavignier saiu definitivamente do Brasil em 1953. Já Ivan Serpa foi o principal responsável pela formação do Frente. A emergência da invenção formal abstracionista e concretista marcou o princípio do fim da hegemonia do modernismo temático da brasilidade (1920), dos regionalismos (1930) e do realismo social (1940), dominantes na arte brasileira desde a década de 1920. A reação dos modernistas figurativos (ou realistas) ao abstracionismo foi arrasadora, tal como demonstra o já citado texto Realismo e Abstracionismo, de Di Cavalcanti. A ascensão da nova arte no horizonte da produção visual brasileira sublinhava a autonomia da produção artística em relação a quaisquer outros assuntos que não fossem os da própria arte. Consideradas as características então paradigmáticas do modernismo europeu, podemos afirmar que o Grupo Ruptura foi o primeiro a produzir um discurso explicitamente de vanguarda no Brasil (a impossibilidade de modernizar, sem rupturas, separações, oposições, cortes e princípios claros e coerentes) e a propor um “ismo” (o concretismo), assim como também foi o primeiro movimento a lançar um manifesto, centrado especificamente na renovação da linguagem da arte por meio de rompimento estritamente plástico-formal. Outro polo fundamental dessas vanguardas brasileiras do pós-guerra foi o Grupo Frente, núcleo do concretismo carioca. Parcialmente formado por alunos de Ivan Serpa (1923-1973) nos cursos do MAM/ RJ, o grupo fez sua primeira mostra em 1954, na Galeria do Ibeu do Rio de Janeiro. Dela participaram Aluísio Carvão (1920-2001), Carlos Val (1937), Décio Vieira (1922-1988), Ivan Serpa, João José da Silva Costa (1931), Lygia Clark (1920- 1988), Lygia Pape (1927-2004) e Vincent Ibberson. Também integraram o grupo Abraham Palatnik (1928), César Oiticica (1939), Elisa Martins da Silveira (1912-2001), Emil Baruch (1920), Franz Weissmann (1911-2005), Hélio Oiticica (1937-1980) e Rubem Ludolf (1932-2010). O Grupo Frente, entretanto, não produziu, como Waldemar Cordeiro e os concretistas paulistanos, um discurso explicitamente centrado na ruptura. Tampouco publicou qualquer manifesto com princípios em torno dos quais seus integrantes devessem se aglutinar (o manifesto neoconcreto foi lançado em 1959). A ruptura com o passado que o Frente estava radicalmente levando a cabo, ainda que por outros caminhos, fundava-se na livre experimentação de linguagens. Portanto, o que amalgamava o grupo do Rio, nesses primórdios, não eram os princípios plástico-formais da arte concreta, mas a vontade comum de formar uma frente contra adversários, compartilhados, aliás, com o grupo de Cordeiro: o figurativismo modernista brasileiro e o abstracionismo informal.

ENTRE A FAZENDA E O ARRANHACÉU: LIMITES DE UM MODERNISMO SEM RUPTURAS

Os modernistas brasileiros do começo do século XX tinham um adversário comum, impossível de ser enfrentado a partir de práticas artísticas: o modelo socioeconômico predominantemente agroexportador, que determinava o lento ritmo dos avanços sociais e limitava a expansão nacional dos benefícios da vida moderna ao Distrito Federal, à capital paulista e, em menor escala, às mais ricas capitais estaduais do país. Tais indícios de modernidade, no entanto, eram insuficientes para caracterizá-los como prenúncios de um futuro industrial. Eles não apontavam para a implantação generalizada do capitalismo no Brasil, posto que se inscreviam no mesmo quadro sociopolítico que deixava a maioria de suas regiões à margem do crescimento econômico verificado em seus centros urbanos mais importantes. Tornara-se urgente ampliar nossa infraestrutura portuária, adequando-a aos novos padrões tecnológicos e industriais − guindastes, silos, armazéns e frigoríficos para estocar produtos transportados por trem ou por cabotagem dos centros produtores de café, açúcar, borracha, carne e minério até os portos de Santos, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Belém, Manaus e Porto Alegre. A adequação do velho modelo agrário aos padrões do capitalismo da época estimulou o crescimento dos serviços bancários, comerciais, culturais e administrativos, de saneamento básico e de saúde pública nos grandes centros em que se negociava a exportação desses produtos. Igualmente importante é não perder de vista o fato de que São Paulo havia se tornado, a partir do último quartel do século XIX, a província mais rica do país e o motor mais poderoso do modelo econômico agroexportador do Império (e da Primeira República, 1889/1930), do qual então dependia essencialmente. Graças a essa prosperidade vertiginosa, São Paulo pôde desviar parte do capital agrícola, que crescentemente passara a acumular, para a criação de ferrovias e fábricas de tecidos, utensílios populares etc.

Se o café e a estrada de ferro configuram uma relação simbiótica, de forma que não haveria café sem estrada de ferro e não haveria estrada de ferro sem café, a industrialização é filhote dos dois. Ela não existiria sem o concurso conjugado do café e da estrada de ferro. Os estrangeiros tiveram o melhor papel, nela, e não só os italianos – outro grupo importante foi o dos sírios e libaneses. Mas isso não quer dizer que os fazendeiros tenham se ausentado do novo setor. Já citamos o caso de Antônio Álvares Penteado que montou sua fábrica de tecidos com operários italianos. Os Prados não ficaram atrás. Em 1897, Antônio Prado, em sociedade com outro paulista antigo, Elias Pacheco Jordão, fundou a vidraria Santa Marina. A fábrica tinha 200 empregados – operários italianos e técnicos franceses − e instalou-se no bairro chamado Água Branca, nome do riacho que corria no local (TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da solidão: uma história de São Paulo das origens a 1900. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2003, p. 407-408).

A interdependência econômica entre a fazenda e o arranha-céu plasmou, por conseguinte, todas as esferas da vida nacional da República Velha − econômica, político-militar, infraestrutural, institucional e cultural.

Nas artes, essa interdependência demandava, ao menos na esfera discursiva, a elaboração de um modernismo sem ruptura, já que as classes dominantes precisavam articular culturalmente a modernidade tópica, observável nos centros urbanos mais ricos do país, com as velhas tradições legadas pelo passado agrícola colonial e imperial brasileiro. Em artigo publicado na cidade de Santos, no jornal O Diário, em 1950, quase três décadas após a Semana de Arte Moderna de 1922, Guilherme de Almeida sintetizou a trajetória de um de seus ícones, a pintora modernista Tarsila do Amaral (1886-1973). A síntese de Almeida exemplificava e atualizava a força da velha articulação discursiva que plasmara a brasilidade modernista. Seu propósito parecia ser o de harmonizar nossa produção agrária, fundiariamente retrógrada, com o incipiente capitalismo urbano, dela decorrente:

E porque Tarsila pode pintar São Paulo. Tem raça, pintora fazendeira, veio da roça paulista para a cidade paulistana, a caminho de Paris. Da roça trouxe o gosto caipira das cores de baú de lata e das flores de papel de seda para o altar de São Benedito. Na cidade aprendeu que isto aqui é um “galicismo a berrar nos desertos da América”. De Paris voltou com vestidos de Poiret, a ensinar a gente a ser brasileira. (ALMEIDA, Guilherme de. O Diário, Santos, 30/12/1950. In: AMARAL, Aracy A. Tarsila sua obra e seu tempo. São Paulo: Editora 34, Edusp, 2003, p. 143)

Em meados da década de 1920, a hibridização de questões específicas da arte com questões extra-artísticas (da realidade socionacional e regional) tornou-se tarefa primordial dos discursos de nossos modernismos (5) . No Manifesto Pau-Brasil, marco da eclosão da brasilidade modernista, lançado em 1924, Oswald de Andrade propunha:

Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil. Obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e a sábia preguiça solar. A reza. O Carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau-Brasil. O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional. Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época (ANDRADE, Oswald de. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 18 de março de 1924).

No Pau-Brasil, publicado quatro anos antes do Manifesto Antropófago6 , Oswald admitia que o trabalho de “acertar o relógio império da literatura nacional”, isto é, a modernização e atualização da linguagem literária pela superação dos repertórios da literatura do século XIX, estava concluído. O problema agora era outro, “ser regional e puro em sua época”. Tratava-se de buscar os fundamentos discursivos de uma modernidade própria, que hibridizasse as tradições culturais populares, enraizadas no passado agrário do país (a reza, o carnaval, o sabiá, a saudade dos pajés, a sábia preguiça solar), com indícios universais da produção e da cultura industriais, que aqui então despontavam (cilindros dos moinhos, turbinas elétricas, usinas produtoras, questões cambiais, obuses de elevadores, cubos de arranha-céus e campos de aviação militar). De acordo com o referido manifesto, nossa modernidade deveria ser buscada na mescla dos indícios modernos (capitalistas), então observáveis, com valores culturais tradicionais surgidos nas bordas da velha sociedade, cuja base econômica, praticamente preservada nas primeiras décadas da República, entravava o avanço do país em direção à modernização efetiva. Não havia no Pau-Brasil qualquer menção ou proposta concreta de mudança por meio da ruptura, exceção feita ao acerto do “relógio império da literatura nacional”. Tais observações, entretanto, não devem ser tomadas como críticas à qualidade do trabalho de Oswald (cujo experimentalismo pioneiro o situou entre os renovadores da linguagem literária brasileira, da qual se tornou referencial indispensável) nem à qualidade das produções de outros modernistas que transcenderam o teor ilustrativo das ideologias que os moviam, por meio de renovação figurativa de nossa visualidade. Consequentemente, a menção aqui feita ao Pau-Brasil restringe-se, sobretudo, ao esclarecimento do âmbito discursivo-ideológico de um projeto de modernismo nacional, comprometido com a síntese entre a fazenda e o arranha-céu, síntese cuja cristalização terminou por frear a dinâmica da produção modernista até a emergência das vanguardas abstrato-concretas do pós-guerra.

O movimento cultural e artístico de 22 – e Prestes Maia7 pode ser filiado a êsse movimento – perdem a oportunidade de compreender a essência do momento histórico que viveu. A exaltação da roda veloz pelo futurismo paulista não passou de retórica. Quando o processo de urbanização começava a apresentar os primeiros conflitos, Mário de Andrade preferiu dedicar-se ao estudo do folclore rural [...]. A industrialização se deu sem uma super-estrutura comunicativa, se quiserem artística, adequada. Tarcila estudou com Leger – o artista precursor da linguagem da máquina é um dos mais importantes cubistas na opinião de Mondrian – para retratar (é êsse têrmo) as paisagens da sua fazenda. O morno reforismo de 22, com exceção de Oswald, não conseguiu camuflar a sua cegueira. Agora, em 1970, faremos os mesmos êrros de 22? O problema será transformado em rotina profissional ou merecerá um debate mais amplo, que mobilize a inteligência brasileira e latino-americana? (CORDEIRO, Waldemar. Uma nova variável para o modelo de organização territorial: a evolução dos meios eletrônicos de comunicação. Ver página 514).

PRINCÍPIOS E PROCESSOS DE WALDEMAR CORDEIRO

Examinada a correlação entre a ruptura proposta por Waldemar Cordeiro e os contextos históricos e artísticos do pós-guerra, caberia esclarecer as guinadas processuais ocorridas em sua própria trajetória poética8 . Seria oportuno entender como o artista, considerado racionalista por seus opositores (que reduziam seu trabalho à férrea aplicação de princípios “imutáveis”), conseguiu, na contramão dessas opiniões críticas, experimentar, assimilar e justificar as novas questões e inflexões surgidas em seu processo reflexivo-produtivo, desde sua adesão inicial ao concretismo até as experiências em arte computacional (arteônica) feitas entre 1969 e 1973.

Pensador notável, Cordeiro embasava suas ideias nas questões de ponta mais renovadoras e comprometidas com a modernidade − das teorias da arte, história e política e também nas do paisagismo, planejamento urbano e comunicação – áreas em que atuou profissionalmente para a própria manutenção de sua família. Ele compreendeu desde cedo que a ruptura proposta não podia restringir-se ao corte com a figuração modernista e o abstracionismo informal. De seu ponto de vista, a vitória definitiva do mundo moderno e as conquistas sociais dele decorrentes só se consolidariam com o triunfo da cultura industrial − arte autônoma, materiais industriais, mobilidade urbana, meios eletrônicos de comunicação de informações etc. − sobre a cultura rural, enraizada no imaginário brasileiro desde a era colonial. De acordo com o artista, a arte moderna (particularmente a pintura concreta) construiu sintaxe especificamente visual e formou um público capaz de lê-la. Tal sintaxe provavelmente expandiu-se devido à contiguidade, facilmente perceptível, entre o significado autorreferente de linhas, formas e cores (elementos essenciais da “língua” visual) e a consumação descritiva de tal autorreferência na linguagem verbo-discursiva das teorias formalistas da arte. A conjugação de formalismo artístico com formalismo teórico transformou não só a relação arte/fruidor – já que aproximava o observador do que seria o juízo artístico (visual) fiedleriano – como também desarticulou a esfera discursivo-narrativa, enraizada nos temas da pintura clássica. A imbricação entre produção artística e discurso teórico, no trabalho de Cordeiro, situa-o entre os raros artistas-intelectuais da arte brasileira (9) . Suas críticas sobre equívocos e contradições da argumentação e da produção de seus debatedores provocaram respostas e réplicas que configuraram prolongada polêmica – travada entre 1957 e 1959 na grande imprensa de São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais − que desaguou na ruptura neoconcreta10 proposta pelo concretismo carioca (1959). Sem a participação de Waldemar, o debate entre as vanguardas artísticas das décadas de 1950 e 1960 não teria acumulado a mesma força intelectual, produtiva e dinamizadora, empregada na superação definitiva da dependência da arte brasileira em relação aos repertórios renovadores da produção internacional. Para artistas-pensadores, como Cordeiro, a linguagem verbo-textual foi complemento permanente de seus trabalhos e via precisa para descrever e investigar as filigranas visuais e conceituais de sua obra, bem como da produção artística em geral. Consequentemente, a explicitação da ruptura − espacial, cromática e plástico formal –, promovida pelo concretismo paulista, encontrou no rigor e na clareza da palavra escrita de Waldemar Cordeiro o melhor meio para descrevê-la em suas articulações formais e causais complexas. Vale aqui reiterar o conceito de poética de Umberto Eco, principal referência teórica das transformações ocorridas na produção do artista nos anos 1960 ( já citado na nota 8 deste texto):

Uma pesquisa sobre as poéticas (e uma história das poéticas; e, portanto, uma história da cultura vista através do prisma das poéticas) baseia-se seja nas declarações expressas dos artistas [...] seja na análise das estruturas da obra, de sorte que da maneira como a obra está feita se possa deduzir o modo como ela queria ser feita (ECO, Umberto. Obra aberta. 2. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971, p. 24-25).

Desse ponto de vista, as fontes fundamentais para a compreensão hermenêutica do trabalho de artistas como Cordeiro situam-se, primeiramente, em seus próprios textos. Também são importantes para tal compreensão os escritos de autores que os referenciaram intelectualmente e os textos daqueles com quem esses artistas debateram ou se opuseram. Essas fontes, é claro, não podem substituir a fruição direta (visual) das obras. Ainda assim, é somente por meio da palavra falada ou grafada que o ato de fruição transborda dos limites eminentemente individuais em que havia sido consumado, para reverberar (por meio de comentários, opiniões, palestras, debates e em textos críticos e teóricos) no âmbito sociocoletivo da arte e da cultura. Graças às centenas de anotações, artigos e escritos produzidos por Waldemar Cordeiro entre o fim da década de 1940 até o ano de 1973, é possível acompanhar tanto o amadurecimento de suas questões teóricas − sobre arte, visualidade, paisagismo e política – quanto a costura poética de todas as crises e cesuras processuais ocorridas em sua obra desde os primórdios até os últimos trabalhos. Waldemar aproximou-se da arte concreta a partir dos últimos dois anos da década de 1940, período em que compreendeu e assumiu premissas da teoria da pura visibilidade de Fiedler, da gestalt visual e de questões propostas por Piet Mondrian, Theo Van Doesburg e Kasimir Malevich, por ele sintetizadas na fundamentação dos princípios do concretismo brasileiro e de sua própria poética. Após tal período de transição, Cordeiro começa sua trajetória concretista. Entre 1950 e 1960 – durante uma década, portanto –, sua pintura baseou-se no rigor formal matemático-geométrico preconizado pelo concretismo internacional.

ANTECEDENTES

A arte concreta surgiu em Paris (1930), como resposta de

Theo Van Doesburg ao grupo, à revista e à exposição Cercle et Carré, organizadas pelo crítico belga Michel Seuphor (1901-1999), militante do abstracionismo, e pelo pintor uruguaio Joaquin Torres Garcia (1874-1949) para celebrar o abstracionismo (que completava, então, 20 anos). Para Van Doesburg, grande parte da produção não figurativa, sobretudo a geométrica, era equivocadamente chamada de abstrata. Na verdade, a maioria dos trabalhos desses artistas não resultava da abstração das formas existentes na natureza, posto que tornavam visíveis (concretas) ideias surgidas mental e intelectualmente no curso de seus processos de trabalho. A declaração de princípios que abre o número de introdução da revista é concisa e cristalina. Seus tópicos delimitaram o campo da pintura concreta por quase 30 anos, até o começo da década de 1960.

São eles: Base da pintura concreta

Dizemos:

1.° A arte é universal.

2.° A obra de arte deve ser inteiramente concebida e formada pelo espírito antes de sua execução. Ela não deve receber nada dos dados formais da natureza, nem da sensualidade, nem da sentimentalidade. Queremos excluir o lirismo, o dramatismo, o simbolismo etc.

3.° O quadro deve ser inteiramente construído com elementos puramente plásticos, isto é, planos e cores. Um elemento pictural só significa a “si próprio” e, conseqüentemente, o quadro não tem outra significação que “ele mesmo”.

4.° A construção do quadro, assim como seus elementos, deve ser simples e controlável visualmente.

5.° A técnica deve ser mecânica, isto é, exata, anti-impressionista.

6.° Esforço pela clareza absoluta. Carlsund, Doesburg, Hélion, Tutundjian, Wantz (Revista Art Concret, número de introdução Paris, 1930. In: AMARAL, Aracy (Org.). Projeto construtivo brasileiro na arte: 1950- 1962. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna; São Paulo: MEC/ Funarte, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, Pinacoteca do Estado, 1977, p. 42).

Há evidente correlação entre o teor objetivo estrito desses princípios (pensamento, universalidade, clareza absoluta e exatidão técnica) e aqueles das ciências. Por outro lado, características tidas como indissociáveis da criação artística – tais como “dados formais da natureza”, sensualidade, sentimentalidade, lirismo, dramatismo, simbolismo – haviam se tornado obstáculos ao sucesso da expansão da arte concreta. Era, portanto, fundamental ultrapassá-los. Tais princípios poderiam também, por analogia, ser remetidos ao cientificismo preconizado pela teoria da pura visibilidade de Fiedler (que, como vimos, influenciou questões fundamentais de Cordeiro e dos artistas do Grupo Ruptura), ainda que a referência teórica fundamental das questões intelecto-universais

do neoplasticismo e, por conseguinte, das ideias de Theo Van Doesburg, tenha sido o pensamento do matemático H. Schoenmaekers (1875-1944). Entretanto, no ano seguinte ao do lançamento da revista e do Grupo Arte Concreta, Van Doesburg faleceu, e o novo movimento entrou em estado de hibernação sem a sua liderança. Passados cerca de quatro anos de sua morte, o pintor, escultor, arquiteto e designer suíço Max Bill retomou os princípios do concretismo, tornando-se o principal representante e propagador internacional dessa vertente. Seu desempenho, nesse sentido, foi fundamental para a renovação da arte sul-americana, já que a difusão das ideias concretistas teve excelente acolhida entre os jovens vanguardistas da região. A arte concreta chegou à América do Sul pela Argentina em 1945, quando foi formada em Buenos Aires a Asociación Arte Concreto-Invención. No ano seguinte, a associação fez sua primeira exposição no Salon Peuser e publicou o Manifesto Invencionista. Dissolvida em 1947, a associação era composta pelos seguintes pintores, escultores e poetas: Alberto Molenberg (1921), Alfredo Hlito (1923-1993), Antonio Caraduje (1921), Edgar Bayley (1910-1990), Enio Iommi (1926-2013), Gyula Kosice (1924), Lidy Prati (1921-2008), Manuel Espinosa (1912-2006), Oscar Núñez (1924), Raúl Lozza (1911-2008) e Tomás Maldonado (1922), entre outros. Logo no início da década seguinte, o concretismo foi introduzido no Brasil pelos grupos Ruptura e Frente. Mas foi a conquista por Max Bill do prêmio Federação das Indústrias de São Paulo, atribuído pela 1a Bienal Internacional de São Paulo (em outubro de 1951), com a escultura Unidade Tripartida, que deu visibilidade nacional ao artista e à arte concreta. A premiação consistiu em poderoso estímulo aos artistas abstrato-concretos brasileiros, particularmente, aos concretistas paulistanos, entre os quais já se destacava, por sua obra e por sua atitude intelecto militante, Waldemar Cordeiro.

Num nível prévio à invenção plástica, seria possível – segundo Cordeiro (alinhado a Mondrian, Van Doesburg e Bill, entre outros) – fundamentar a ruptura produzida pelo concretismo em princípios diametralmente opostos àqueles formulados pela Renascença.

Vejamos inicialmente quais são os princípios do figurativismo. Leonardo escreve: “A pintura localiza primeiramente os seus princípios verdadeiros e científicos: que é o corpo sombreado, que é a sombra primitiva, que é a sombra derivada, que é a luz? Quer dizer, treva, luz, cor, figura, ubiquação, distância, proximidade, movimento e repouso...”. Esses princípios poderiam ser resumidos e explicados da seguinte forma: a) construção espacial tridimensional (ubiquação, distância e proximidade); b) claro-escuro (corpo sombreado, treva e luz); c) movimento como movimento de um corpo no espaço físico (movimento e repouso). Leonardo considerando o preto “a receita de qualquer cor”, formula o princípio do “tonalismo”, que é princípio fundamental do figurativismo. Os novos princípios artísticos podem ser resumidos da seguinte forma: a) construção espacial bidimensional (o plano); b) atonalismo (as cores primárias e as complementares); c) movimento linear (fatores de proximidade e semelhança). (CORDEIRO, Waldemar. Ruptura, ver página 210).

Os princípios gerais da nova pintura supunham: 1) a necessária preservação do plano pictórico (o espaço concretamente bidimensional do quadro); 2) a preferência pela cor atonal, chapada e sempre que possível restrita às cores primárias, consideradas por Mondrian e assumidas pelo concretismo como cores abstratas, graças à sua pureza e ao papel de componente essencial da produção de todas as outras cores; 3) que a dinâmica da composição deveria resultar do ritmo de suas formas (e não de algo semelhante à representação do movimento dos personagens envolvidos na cena pictórica, como ocorria desde a arte naturalista da Renascença). A ruptura com a pintura clássico-acadêmico-figurativa construiu muralha simultaneamente discursiva e prática (num sentido similar ao empregado posteriormente por Arthur Danto em Após o Fim da Arte). Tinha por objetivo defender a pureza da proposta concretista num ambiente cultural que se pretendia “europeu” − desde a importação tardia do neoclassicismo pela corte portuguesa, instalada no Rio de Janeiro (1808/1821) para escapar da ocupação napoleônica de Portugal –, mas que em realidade não passava de simulacro defasado de referências artísticas do velho mundo na América do Sul. Tratava-se agora, inversamente, de construir a inscrição dessas primeiras vanguardas como parte fundamental e de ponta da experiência artística brasileira e, com isso, garantir intelectual e artisticamente sua interlocução em pé de igualdade com as vanguardas internacionais do pós-guerra. As preocupações didático-formadoras de Waldemar Cordeiro (que permearam, por exemplo, suas críticas ao Grupo Frente e posteriormente ao neoconcretismo) tornaram-se claras, já no Manifesto Ruptura, mas eram também observáveis, num nível menos evidente, na escolha dos títulos de seus trabalhos. Extraídos de princípios da arte concreta, esses títulos constituíam indícios semânticos da frequente correlação entre teoria e invenção formal em sua obra observável em: Movimento (1951), Estrutura Determinada e Determinante (conjunto de obras produzidas entre 1957 e 1959) e, sobretudo, no conjunto de trabalhos Ideia Visível, realizado entre 1955 e 1957, cujo sentido pode ser associado à afirmação de Theo Van Doesburg: “A pintura é um meio de realizar oticamente um pensamento: cada quadro é um pensamento-cor” (Revue d’Art Concret, 1930). O projeto renovador de Cordeiro estendeu-se também às técnicas e aos materiais de trabalho convencionais da pintura, preteridos por aqueles industriais: substituição da tinta a óleo pelo esmalte e tinta-massa, e da tela pelo compensado, ou esporadicamente pelo Plexiglass (acrílico). Todas as etapas do processo de trabalho do artista evidenciavam seu compromisso teórico e prático permanentes com a ruptura com o passado pré-industrial.

CRISE & TRANSFORMAÇÃO

A passagem das décadas de 1950 e 1960 foi marcada por mudanças internacionais decorrentes do contexto político-econômico, legado pelo conflito mundial − a guerra fria entre o bloco soviético e o norte-americano, a guerra da Coreia, a guerra do Vietnã e a erosão de valores éticos, políticos e artísticos instaurados pelo Iluminismo. No caso brasileiro, há de se considerar problemas nacionais específicos, como a ditadura instaurada no país a partir do golpe civil-militar de 1964. O limiar dos anos 1960 coincidiu também com o desgaste internacional e nacional do modernismo abstracionista hegemônico da década precedente. Tornara-se urgente a produção de novos discursos que emprestassem sentido à nova realidade, e a primeira resposta efetiva a essas demandas socioideológicas veio das artes. Em contraposição à lógica autorreferente das poéticas formalistas, surgiram a arte pop anglo-americana, o nouveau réalisme francês, a otra figuración argentina, a nova figuração e a nova objetividade brasileiras, que propunham experimentação voltada para o compromisso semântico entre obra e vida. Cordeiro não resistiu nem se opôs a essas transformações. Ao contrário, procurou formulá-las e inscrevê-las, teórica e praticamente, em seu processo poético. Os princípios da arte concreta que até então o norteavam foram abalados pela dúvida, levando-o ao consequente reconhecimento da incompatibilidade entre a teoria da pura visibilidade de Konrad Fiedler e a nova realidade artística e sócio-histórica que apontava para a investigação de outros caminhos

[...] a situação para mim é clara: ou passamos a considerar a arte concreta do ponto de vista do desenvolvimento histórico da sua natureza comunicativa autônoma e direta, em contínuas transformações quantitativas e qualitativas, identificando-a com os aspectos substantivamente novos e criativos da arte contemporânea, ou, diversamente, a arte concreta na acepção histórica pertence ao passado e terminou a sua existência. a experiência concreta começou para mim como decorrência de uma atitude em face da situação criada pela mostra inaugural do museu de arte moderna de são paulo e pelas polêmicas que se seguiram [...]. os adversários, defensores de modalidades várias de realização de ingênua espontaneidade, não satisfaziam as necessidades de uma adequação histórica de caráter internacional, exacerbando, como reação, a minha busca de uma objetividade que se identificava com um racionalismo de esquemas e apriorismos [...] (CORDEIRO, Waldemar. Novas tendências. Ver página 398).

Havia nessa autoavaliação de seu percurso processual na década de 1950 uma questão de fundo, que apontava para dois caminhos opostos: poderia a arte concreta, em nome do “desenvolvimento histórico de sua natureza comunicativa autônoma e direta”, transformarse a ponto de revogar os princípios da “gramática” visual fiedleriana, que orientou sua própria implantação, defesa e justificativa no Brasil? Ou esta, como todo e qualquer outro ismo proposto pelas vanguardas históricas, pertencia “ao passado e terminou sua existência”? O percurso poético posterior de Waldemar Cordeiro consagrou a escolha do primeiro caminho – aquele do “desenvolvimento histórico de sua natureza comunicativa autônoma e direta”. Ocorrida entre 1960 e 1963, essa transição foi testada experimentalmente e pensada intelectualmente até a virada semântica representada pelos popcretos (1964/1968) e a semântico-tecnológica (1969/1973) da arteônica, que marcaram as duas últimas inflexões de seu trabalho.

antes viví a série das estruturas geométricas determinadas e determinantes, depois uma versão substantiva da poética informal. e é a partir dessa última experiência que as impostações causais se tornaram para mim obsoletas, assim como a arte concreta histórica criadora de esquemas. o informal deixou marcas profundas e hoje desaparece levando consigo todos os purismos acadêmicos. fica no entanto o seu apêlo para um “retôrno às coisas”, ou, se preferirem, à matéria, e a mancha que significa ambigüidade, indefinido, possibilidades de escolha e de direções de leitura, movimento, instabilidade e aleatório (CORDEIRO, Waldemar. Novas tendências. Ver página 398).

Cordeiro buscou, portanto, alternativas para a ruptura atualizadora de seu trabalho em três frentes poéticas, opostas ao

ideário do concretismo histórico, “que se identificava com um racionalismo de esquemas e apriorismos”: duas destas eram resultantes de versão substantiva da poética informal e a última, preparatória da nova rearticulação prático-teórica de sua obra, colocada em pauta quando o artista questionou frontalmente a sintaxe autorreferente do período concretista – fundada na ideia de que “um elemento pictural só significa a ‘si próprio’ e [...], consequentemente, o quadro não tem outra significação que ele mesmo’ (Van Doesburg) – para ingressar no âmbito semântico das correlações entre obra e realidade”11. Tais correlações, no entanto, permaneciam no âmbito linguístico e, por conseguinte, seu estabelecimento precisava encontrar, em novas teorias desse mesmo campo, elementos teórico-práticos para a superação pretendida. Para Cordeiro:

A arte moderna, depois de um período sintático (relação formal entre signos) e de um periodo – mais recente – pragmático (relação dos signos com o interprete), inaugura um periodo Semantico (relação de Signo com as coisas) (CORDEIRO, Waldemar. 7a Bienal – Nova figuração anuncia a alienação do indivíduo, ver página 396)

Compreender o sentido da reaproximação da arte com a realidade era somente uma parte da guinada poética experimentada pelo artista. Sua conquista, porém, tinha por objetivo final conferir à sua obra um teor semântico explícito e não propor a formulação de uma teoria visual da “relação do signo com as coisas”. Os passos decisivos de Waldemar Cordeiro nesse sentido só poderiam, portanto, ser dados no campo da produção, lugar da elaboração e da execução de obras específicas. No primeiro conjunto (1960/1961) dessas pinturas “informais” de transição (posto que ainda possuíam claros indícios da organização espacial geometrizada, legada pelo concretismo), a composição não era mais produzida por meio da precisa delimitação das diferentes áreas cromáticas do plano pictórico, mas pela fluidificação de seus limites por jatos de tinta a óleo obtidos por pistola de pintura automotiva, que indefiniam as transições entre as áreas de cor pela luminosidade cromática. Os títulos dessas pinturas − Constante Amarela (1960), Dinâmica de Luz (1960), Estruturação de Luz (1961), Cor-Relação (1961) e Quadrados Concêntricos (1961), por exemplo, embora ainda autorreferentes, não eram mais remetidos a princípios, mas aos resultados visuais abstratos obtidos por meio da experimentação em que o artista mergulhou. O segundo conjunto, realizado por Cordeiro em 1963, reuniu as pinturas mais intuitivas e gestuais de toda a sua produção. Consistia de pinturas abstratas, sem título, em que pequenos gestos isolados se ordenavam com base em modulações camufladas por sua fatura espontânea. Simultaneamente à investigação de possibilidades pictóricas alternativas − quando o “informal deixou marcas profundas e hoje desaparece levando consigo todos os purismos acadêmicos”–, Waldemar produziu ainda, entre 1962 e 1963, um terceiro conjunto de trabalhos que o levou ao limiar do campo poético-semântico que tanto buscara, então em plena expansão na arte internacional. Esse campo marcava a emergência histórica da produção contemporânea, que deslocou o foco da invenção puramente formal, modernista, para o de “experimentações no âmbito semântico” (observável na formulação de todas as propostas de reaproximação entre arte e vida sociocotidiana, à época)12. No caso das obras de Waldemar, esse deslocamento se manifestava simultaneamente em diferentes instâncias, tanto aquela implícita nos materiais industriais comumente usados em seus trabalhos (tinta metálica, espelhos, vidro corrugado, prismas de vidro e barras de ferro) e em sua construção/montagem (estruturação específica desses materiais nas obras), como em sua própria titulação (Ambiguidade, 1962; Ambiguidade, 1963; Opera Aperta, 1963; Aleatório, 1963)

ARTE CONCRETA SEMÂNTICA: OS POPCRETOS

Com os popcretos Cordeiro reencontrou, finalmente, o que havia temporariamente perdido: a articulação processual entre produção e teoria, indissociável de seu modus operandi intelecto-político, de seus métodos de produção e dinâmica poética. Tais obras celebravam nos próprios títulos a superação teórica do concretismo histórico, consumada pela adesão do artista às ideias de Umberto Eco que na Obra Aberta, cuja primeira versão foi publicada na Itália em 1958, pensava a linguagem da produção de vanguarda como um modo de formar comprometido, por analogia estrutural (mas não temática), com a realidade social em que se inscrevia. Ao lado disso Eco também considerava a obra de arte “uma mensagem fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados que convivem num só significante. Essa condição constitui característica de toda obra de arte” (ECO, Umberto. Obra aberta − forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971, p. 22). O teor aberto “de toda obra de arte” decorria do papel decisivo do fruidor, cujas experiências, opiniões e conhecimentos prévios mesclavam-se à estrutura da obra num encontro participativo e em apreensão, sempre singular, do sentido poético materializado objetivamente pelo artista no trabalho.

[...] o discurso primeiro da arte, ela o faz através do modo de formar; a primeira afirmação que a arte faz do mundo e do homem, aquela que pode fazer por direito e a única de significado real, ela a faz dispondo suas formas de uma maneira determinada, e não pronunciando, através delas, um conjunto de juízos a respeito de determinado assunto. Fazer um aparente discurso sobre o mundo, narrando um “assunto” diretamente relacionado com nossa vida concreta, pode ser a maneira mais evidente e, contudo, imperceptível, de fuga ao problema que interessa [...] O verdadeiro conteúdo da obra torna-se seu modo de ver o mundo e de julgá-lo, traduzido em modo de formar, pois é nesse nível que deverá ser conduzido o discurso sobre as relações entre a arte e o mundo (ECO, Umberto. Obra aberta − forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971, p. 255-256, 258).

A virada poética experienciada ao longo de quatro anos chegou a termo em 1964 (13), quando Waldemar iniciou a produção do que chamou de “arte concreta semântica”. Caracterizava-se pela montagem de objetos (obras) compostos de objetos cotidianos (ou de seus fragmentos), por ele assumidos como signos qualificados por uma estrutura (aquela da obra/objeto), comprometida com o contexto sociocultural em que foi produzida. À mesma época, Augusto de Campos (e os demais poetas concretos do Noigandres) havia também experimentado transição semelhante à de Cordeiro, mas nomeou suas novas experiências poéticas de popcretos. Tal designação, menos analítica que a do artista, embora mais eficiente como síntese de uma nova ideia, terminou por substituir publicamente, ainda em 1964, o conceito proposto por Waldemar. Em dezembro desse conturbado ano, Campos e Cordeiro expuseram seus popcretos em São Paulo. Conforme Lúcio Agra, tais eram compostos “de colagens e objetos-colagem e happenning de Damiano Cozzella na galeria Atrium [...] a colagem comanda o processo, mas a fonte usada é a própria mídia” (jornais e revistas) (14.)

Se a titulação dos trabalhos foi sempre importante para Cordeiro (pois acrescentava à materialidade efetiva de suas composições as referências intelectuais nelas inscritas), nas montagens popcretas ela tornou-se ainda mais essencial, pois lhe cabia articular, semanticamente, a estrutura desses objetos com a realidade a que seus títulos aludiam. Os nomes dados aos primeiros popcretos, construídos no ano do golpe de Estado, tornaram-nos ícones críticos da crescente interferência da ditadura na vida pública e privada dos brasileiros, da recente privação de informação pela censura, da frustração de demandas e expectativas sociais, do cerceamento dos direitos individuais e civis etc. − Jornal (1964), Popcreto Para Um PopCrítico (1964), Contra-Mão (1964), Liberdade (1964), Contra os Urubus da Arte Concreta Histórica (1964), Tudo Consumido (1964). Nos anos subsequentes, os popcretos expandiram seu escopo semântico para diversas esferas do cotidiano − Contra o Naturalismo Fisiológico (1965), Amargo (1965), Ponto de Vista (1966), Dólar (1966), Texto Aberto (1966), Viva Maria (1966), Luz Semântica (1966), Autorretrato Probabilístico (1967), Beijo (1967). Estes três últimos trabalhos, entretanto, podem ser tomados, seja por seu teor eletromecânico − Luz Semântica e Beijo −, seja pela tematização do probabilismo binário − Autorretrato Probabilístico − como passos em direção à última pesquisa poética de Waldemar Cordeiro, a arteônica (arte computacional). Segundo conceituação de Hélio Oiticica (“Esquema Geral da Nova Objetividade”, publicado no catálogo da mostra Nova Objetividade Brasileira, realizada no MAM/ RJ, 1967), o popcreto seria uma proposição na qual o lado estrutural (o objeto) fundese ao semântico.

Para ele a desintegração do objeto físico é também desintegração semântica, para a construção de um novo significado. Sua experiência não é a fusão de Pop com Concretismo como o querem muitos, mas uma transformação decisiva das proposições puramente estruturais para outras de ordem semântico-estrutural, de certo modo também participantes. A forma com que se dá essa transformação é também específica dele Cordeiro, bem diferente da do grupo carioca, com caráter universalista, qual seja a da tomada de consciência de uma civilização industrial etc.” (OITICICA, Hélio. Esquema geral da nova objetividade. In: catálogo da mostra Nova objetividade brasileira realizada no MAM/RJ em 1967).

A definição feita por Oiticica era aguda. Evitava a classificação do popcreto em categorias já sedimentadas, como a de assemblage, à qual, embora pudesse ser genealogicamente remetido a uma família que começava com as colagens cubistas e Dadá, desdobrava-se nas fotomontagens surrealistas e construtivistas, no readymade duchampiano etc. − desta se distinguia conceitualmente. Cunhado por Jean Dubuffet (1901-1985) em 1953, tal termo designava método de composição decorrente da acumulação de objetos, cujo sentido final preservava a carga semântica prévia do material apropriado pelo artista. Mas se numa assemblage era, portanto, fundamental preservar a identidade original de cada objeto nela reunido, no popcreto havia, como observava Hélio, a “desintegração semântica” desses objetos “para a construção de um novo significado”. Ao conceituar de um ponto de vista positivo as diferenças específicas entre a posição universalista de Cordeiro (e dos popcretos) e as do grupo carioca, Oiticica indicava, também, que atritos teórico-discursivos gerados nos anos 1950, pelo confronto dos princípios da arte concreta (Cordeiro) com o experimentalismo do concretismo carioca (Ferreira Gullar), eram águas passadas. Hélio e Waldemar agora estavam juntos (e a muitos outros artistas concretos e neoconcretos dos anos 1950 e da nova figuração emergida nos 1960) na mostra Nova Objetividade Brasileira (15) (1967). A exposição não se restringia apenas à reavaliação do legado histórico das primeiras vanguardas brasileiras surgidas no pós-guerra (e a atualização da antropofagia de Oswald de Andrade para parte dos que dela participaram – ver nota 6 deste texto), uma vez que também configurava uma frente de resistência cultural e política, não declarada, à ditadura. Em artigo publicado em 1963, um ano antes do golpe de Estado, Waldemar Cordeiro já entrevia a potência crítica da “nova figuração” e o método de montagem que logo utilizaria na feitura dos “popcretos”.

As experiências de arte pragmática – o aleatório e o papel ativo do espectador – constituem hoje mais um passo rumo a uma realidade total: a nova figuração. A n. f. não deve ser compreendida como um retorno ao figurativismo, mas como busca de novas estruturas significantes. A nova figuração denuncia a coletivização forçada de individuo levada a efeito mediante os poderosos meios de comunicação atuais (TV, cinema, rádio e imprensa), a serviço de uma oligarquia financeira cada vez mais ávida de lucro. O pomo de Adão é a coisa e a guia é paga com a alienação. A coisa talismã da segurança na filosofia do confôrto. Possuir as coisas, a qualquer custo, é a pobre ideologia dos alienados. [...] os antigos representavam as coisas, ao passo que as coisas são aqui inseridas elas mesmas na obra. Não mais efeitos cenográficos mas um realismo brutal, cuja possibilidade criativa é garantida pelo processo dialético da montagem (CORDEIRO, Waldemar. 7a Bienal – Nova figuração anuncia a alienação do indivíduo, ver página 396).

Desde que se voltou para a conquista experimental do âmbito pragmático-semântico, característico da produção contemporânea, Cordeiro começou a fixar sua atenção no papel fundamental e crescente desempenhado pelos meios de comunicação no cotidiano em dois níveis correlacionados: o de sua significação teórico-crítica e aquele da investigação experimental da potência poética das novas tecnologias computacionais. Ele percebeu que embora essa nova modalidade de poder tecnológico estivesse nas mãos do grande capital e da publicidade, voltado portanto para a formação e para a manipulação da opinião pública, era possível explorá-lo numa outra direção, ou melhor, na contramão da direção em curso. A essa tendência mundial somava-se, no caso brasileiro, a instrumentalização dos meios de comunicação de massa pela ditadura civil-militar − então preocupada com a integração do país −, por meio de concessões às primeiras redes de televisão nacionais que, mesmo dóceis, não estavam livres da censura do governo. Para Waldemar Cordeiro, os meios e técnicas artesanais da arte não tinham, por sua própria natureza, qualquer condição de abranger um público extenso como aquele atingido pela comunicação de massa. Consequentemente seria preciso romper com os meios convencionais de feitura (inclusive, com a montagem manual dos objetos da nova figuração e na dos popcretos), que resultavam em obras únicas, e iniciar a experimentação poética com base na tecnologia computacional, prevendo a produção e transmissão futuras dessas obras especialmente concebidas para o campo midiático:

A obsolescência do sistema de comunicação da arte tradicional reside na limitação de consumo implícita na natureza do meio de transmissão. O número limitado de fruidores possíveis, os custos elevados, a área de atendimento e as dificuldades técnicas do sistema de comunicação da arte tradicional estão aquém da demanda cultural quantitativa e qualitativa da sociedade moderna [...]. A utilização de meios eletrônicos pode proporcionar uma solução para os problemas comunicativos da arte mediante a utilização das telecomunicações e dos recursos eletrônicos, que requerem, para a otimização informativa, determinados processamentos da imagem. No caso da arteônica o transporte não implicaria transformação [...]. Sabe-se que a mera utilização do computador não significa por si só a solução de todos os problemas. Nota-se, por exemplo, uma tendência para o virtuosismo técnico, quase um neoformalismo visando a uma demontração hedonística sofisticada. Essa tendência, embora não formule problemas novos no campo da arte, em virtude dos processos automáticos empregados, possui o grande mérito de desmitificar a arte tradicional e contribuir para a análise de processos da mente na atividade artística (CORDEIRO, Waldemar. Arteônica, ver página 591).

Para enfrentar tal desafio, o artista chegou em 1968 à última etapa de seu caminho poético, a arteônica, cujo sentido e justificativa fundavam-se em diagnóstico dos limites do sistema de comunicação da arte tradicional, com vistas à sua superação pela via computacional.

ARTEÔNICA: RECOMEÇO FINAL

Ao final dos 1960, Waldemar Cordeiro encontrava-se novamente diante de inquietações poéticas e políticas geradas por

dúvidas sobre a pertinência da nova figuração, pela Guerra Fria e pela ditadura brasileira. Sua trajetória que começara com ruptura fundada na sintaxe “autorreferente” do concretismo, transbordou nos anos 1960 do âmbito sintático para o compromisso semântico e pragmático com a realidade sociocotidiana. Entretanto, o papel social dos meios de comunicação de massa, desvendado pelas teorias da comunicação, convenceram-no de que a única ruptura realmente produtiva a ser feita no campo da produção artística só poderia ser aquela (no estratégico campo da comunicação) entre mídias tecnológicas e meios técnicos artesanais, ainda que com ressalvas à rendição de alguns artistas ao virtuosismo técnico e hedonista possibilitado por tais mídias. Cordeiro precisava, portanto, buscar orientação técnico-científica para enveredar pelo desconhecido território da arte computacional ou, conforme preferia, da arteônica. Foi então apresentado pelo físico e crítico de arte Mário Schenberg a Giorgio Moscati, físico, engenheiro, professor e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), usuário do primeiro computador dessa universidade, instalado em 1962. Moscati tornou-se consultor técnico-científico e parceiro de Waldemar em dois trabalhos fundamentais: Beabá (1968) e Derivadas de uma Imagem (1969), obras em que os novos parceiros experimentaram possibilidades técnicas de transformação de imagens fotográficas por computador. Essas imagens, quase sempre apropriadas da imprensa, eram manualmente digitalizadas pelo artista (isto é, a codificação em letras que as formavam era feita a mão), para que Moscati pudesse gerar programas aptos a produzir suas derivações e imprimi-las. A arteônica tornou-se, a partir de então, objeto fundamental tanto de sua reflexão teórica, agora referida, por exemplo, à estética informacional16 de Max Bense, quanto da investigação tecnológica de suas possibilidades de produção. De acordo com Helouise Costa:

Beabá foi um dos dois trabalhos realizados pela dupla a partir de um programa gerador de combinações probabilísticas entre letras. Um outro projeto de Cordeiro e Moscati, mais ambicioso, teria como objetivo a geração de imagens derivadas a partir de uma fotografia tomada como matriz. Devemos considerar que o equipamento utilizado não possuía escâner nem monitor, periféricos raros na época. A entrada de dados se fazia por meio de cartões perfurados e a saída por um impressora de linhas. Portanto para trabalhar com imagens nesse tipo de computador significava, em certo sentido, subverter o sentido da máquina, obrigá-la, melhor dizendo, programá-la de modo a realizar algo não previsto em seu sistema (COSTA, Helouise. Waldemar Cordeiro e a fotografia. Coleção Arte Concreta Paulista. São Paulo: Cosac Naify, p. 29).

No entanto, é igualmente importante destacar, por outro lado, que o teor eminentemente icônico-semântico dessas imagens (por exemplo, A Mulher que Não É BB, 1971 − sigla que à época remetia imediatamente à atriz francesa e símbolo sexual da década de 1960, Brigitte Bardot −, mostrava o rosto aflito de uma mulher vietnamita, vítima de guerra) viera da experiência icônica dos popcretos. Nesse aspecto, Cordeiro estava na contramão da maioria das experimentações visuais feitas à época por meio de computadores, então predominantemente abstrato-geométricas, já que havia conseguido amalgamar na arteônica o rigor matemático de sua experiência concretista inicial e a potência semântico-política da imagem testada nos popcretos. Seria fundamental compreender a arteônica como um retorno de Cordeiro ao exercício permanente de articulação da reflexão teórica com a prática produtiva, consumada, por exemplo, no teor matemático das composições concretistas e dos experimentos computacionais que então recentemente ele iniciara. Característica do temperamento e da produção de Cordeiro desde o início de sua trajetória, essa articulação foi por ele posta em dúvida durante a transição entre a sintaxe concretista e o universo pragmático-semântico dos popcretos, período em que a experimentação assumiu a dianteira de seu processo de trabalho. Mas, a partir da arteônica, que envolvia conhecimento científico e tecnológico, a conexão arte/intelecto foi retomada pelo artista com a mesma intensidade investida no passado. Tido como racionalista por seu interesse teórico e científico permanente, Cordeiro não correspondia ao perfil de artista esperado pelas ideologias da brasilidade. Suas concepções “universalistas” opunham-no à preocupação com o estabelecimento de especificidades nacionais ou regionais, então dominantes na esfera cultural do país. Mas sua inegável competência argumentativa, capaz de aglutinar setores dissidentes dessas ideologias, foi fundamental não só para a emergência da vanguarda concretista paulistana, mas também para a dinamização do debate com a vanguarda carioca. Tais questões − antes vetadas por um sistema de arte refratário à formulação teórica e à investigação de problemas (autorreferentes) de linguagem − foram, conforme a posteridade viria demonstrar, centrais para a cultura visual brasileira do pós-guerra.

FANTASIA EXATA

A articulação entre pintura e intelecto tornou-se central na Renascença e consagrou Leonardo Da Vinci (1452-1519) como o primeiro e mais notório pintor-pensador da história da arte e seu mais conhecido emblema (ainda que reconheçamos predecessores, como o arquiteto Leon Battisti Alberti [1404-1472] que em 1435 publicou Della Pittura). Da Vinci possuía todos os traços que distinguiam os pintores da Renascença de seus antecessores medievais, pintores-artífices, cujo conhecimento restringia-se praticamente ao domínio técnico-artesanal, voltado para o atendimento de encomendas. A reflexão de Leonardo, registrada em seus escritos sobre a pintura e compilados post mortem por seu herdeiro e discípulo Francesco Melzi, no Trattato Della Pittura, contribuiu decisivamente para a mudança definitiva do estatuto da pintura e do pintor, alçados da esfera das artes mecânicas ou vulgares (produtos da proficiência artesanal) para aquela das artes liberais e superiores (comandadas pelo intelecto).

Aqueles que se enamoram da prática sem a ciência são como os marinheiros que embarcam no navio sem timão ou bússola, que não têm nunca a certeza de para onde se dirigem. A prática deve se edificar sempre sobre a boa teoria, da qual é porta e guia a perspectiva sem a qual nada se faz bem (Tratado da Pintura § 77. Do erro daqueles que usam a prática sem a ciência, p. 51)

Em tal patamar, a produção artística europeia pôde, pela primeira vez, fundamentar o sentido da produção pictórica e escultórica, com base em questões intelectuais que transbordavam o âmbito estrito dos saberes técnicos indispensáveis aos ofícios. Para a arte europeia, desde então, a autoria e os estilos individuais e nacionais por ela qualificados e, sobretudo, as questões poéticas dos artistas tornaram-se traços distintivos (até então inexistentes) entre arte (as belas-artes, lugar em que sua nova função estético-contemplativa era consumada) e artesanato (método de produção de bens utilitários pelos diferentes ofícios), estabelecidos na segunda metade do século XVIII e hoje questionados pela exclusão do outro que essa mesma distinção fundamentou. Mas é bom não perdermos de vista que as críticas ao papel da razão na invenção poética (que não existiriam sem o contraponto de uma arte intelectualizada a ser combatida) são também apresentadas na forma de ideias e conceitos discursivamente transmissíveis, originados em campos teóricos como o da antropologia, psicanálise, entre outros, cuja questão seria chamar a atenção, por meio de teorias, para o papel primordial, na arte, da expressão do irracional, de emoções e pulsões, prévios a qualquer filtro intelectual. A admiração confessa de Waldemar Cordeiro por Leonardo Da Vinci certamente influenciou sua trajetória poética. Tal admiração fora revelada, sem subterfúgios, já em 1952, na sentença inicial do Manifesto Ruptura no qual, afora seus signatários, Da Vinci é o único artista nominalmente citado (“a arte antiga foi grande, quando foi inteligente. Contudo, a nossa inteligência não pode ser a de Leonardo”). Para Waldemar, portanto, a ruptura com a figuração deveria remontar à sua própria fundação teórica (aos seus princípios inteligentes) na Renascença e não aos seus desdobramentos expressionais e oníricos observáveis cinco séculos depois no modernismo. Desse ponto de vista (e respaldados por essa admiração), seria oportuno repensar o processo poético do artista por meio do conceito de fantasia exata proposto por Goethe a propósito de Leonardo Da Vinci, e não simplesmente limitá-lo, adjetivamente, ao racionalismo:

Na epistemologia de Da Vinci, ciência e arte não são formas antagônicas do Conhecimento. O traço que, na gnoseologia de Leonardo, as unifica é a investigação da natureza, a qual não elide o dado imaginativo. Este é o motivo pelo qual, para o colossal fiorentino, a fantasia não pode ser arbitrária: suas construções não podem estar desvinculadas do real. Ela não pode ser fantasiosa, no senso degradante deste adjetivo. E não pode ser porque afamada tem de falar a mestria linguagem da natureza: a arte como a ciência são os dois idiomas do real: para existirem, elas têm de obedecer, na lição leonardodavinciana, às mesmas leis que governam o processo constitutivo das formas naturais. Eis a razão pela qual Goethe definiu a imaginação leonardiana como fantasia sensível exata. Como o valor imanente da verdade que a arte contém é idêntico ao da ciência, a imaginação não pode reter, abrigar, albergar momentos de subjetivismo arbitrário. O mesmo conceito goethiano de fantasia exata aplicado a Leonardo e recordado por Cassirer e Mondolfo em seus estudos sobre a filosofia renascentista, Banfi o aplicou a Galileu, o criador do moderno modelo da prosa científica (OLIVEIRA, Franklin de. O que é Os Sertões? Rio de Janeiro: Revista Brasileira n. 64, 2010, p. 236-237, Fase VII – Julho-Agosto-Setembro 2010 Ano XVI – n. 64/Academia Brasileira de Letras).

A noção de fantasia exata, atribuída por Goethe (1749-1832) à imaginação de Da Vinci identificava em sua obra a proposta de uma nova articulação, de teor investigativo e experimental, entre duas práticas frequentemente polarizadas: arte e ciência. Ele articulou-as tanto em escritos quanto em pinturas ou em mecânica, hidráulica e na perspectiva (ilusão ótica da profundidade do espaço planetário), lugar em se conectavam, integradas, fantasia e exatidão. A fantasia exata não seria, portanto, uma característica singular da obra de Leonardo, mas uma designação possível de poéticas que integram intelecto e invenção.

A criação artística é obra da fantasia, mas de uma fantasia exata, que, tal como faz a ciência, descobre no visível a oculta necessidade interior que o governa, e trata de reproduzi-la. “A ciência − disse Leonardo – é uma segunda criação realizada pela fantasia”; mas o valor de ambas as criações para Leonardo (como assinala Cassirer) não provém de seu afastamento da natureza e da sua verdade (MONDOLFO, Rodolfo. Figuras e ideias da filosofia na renascença, p. 16).

Precedido por raras experiências e inventos de outros artistas europeus e norte-americanos17, pioneiros da arte computacional, Cordeiro foi, no entanto, o primeiro artista brasileiro e latino-americano a investigar e a produzir imagens digitalizadas para essa

nova mídia. Desempenhou também papel pioneiro na difusão da arte computacional no país e no exterior. Em 1971, Waldemar organizou a exposição Arteônica, realizada na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), em São Paulo. Foi a primeira grande mostra nacional (e uma das primeiras internacionais) de arte e tecnologia, acompanhada de conferência sobre o tema. No segundo semestre do ano seguinte o recém-criado Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (IA-Unicamp) inaugurou, sob a inspiração de Cordeiro, o Centro de Processamento da Imagem, do qual foi seu primeiro coordenador. Waldemar Cordeiro faleceu repentina e prematuramente aos 48 anos de idade, em 1973. Em pouco mais de duas décadas de intensa produtividade inventiva, Waldemar participou decisivamente da implantação e da consolidação das vanguardas paulistana e brasileira, promoveu a ruptura (fundada nos princípios autorreferentes propostos pela arte concreta) com o modernismo figurativo brasileiro da primeira metade do século XX. Contribuiu também para a integração teórica e prática entre arte, paisagismo, planejamento urbano, crítica de arte e política e para o debate crítico com a vanguarda concretista carioca do Grupo Frente, embrião do neoconcretismo. Na década de 1960, o artista criticou o fechamento semântico, no qual a arte concreta histórica se havia enredado, constatação que o aproximou da virada neofigurativa em expansão mundial. Entre 1968 e 1973 dedicou-se prioritariamente à investigação da arte computacional do país. Toda a sua produção pode ser tomada como uma alternativa “universalista” às questões temático-nacionais de nosso primeiro modernismo. Mas Waldemar não foi o único a defendê-la, já que as vanguardas abstrato-concretas brasileiras do pós-guerra e a aplicação pioneira da teoria da Gestalt à percepção visual, feita por Mário Pedrosa, por exemplo, também exploraram a potência renovadora dessa alternativa, com base em teorias também fundadas em pressupostos “universais”. Iniciativas como a criação do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e dos Museus de Arte Moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro (MAM/SP e MAM/ RJ) também se inscrevem em tal renovação que marcou o conjunto da cultura brasileira dos anos 1950. A experiência brasileira do modernismo de ruptura tornou-se, portanto, fundamental para a construção de repertórios (dele derivados ou a ele opostos), que alicerçam a trama experimental que frutificou e desdobrou-se em novas questões que hoje configuram o vasto, multifacetado e complexo campo da produção artística contemporânea do país..

Chief mentor and spokesman for the Grupo Ruptura [Rupture Group] – a pioneer group of concrete artists in São Paulo, Waldemar Cordeiro (1925-1973) is also the one who wrote the manifesto, released on their first group exhibition, opened at the Museu de Arte Moderna de São Paulo [São Paulo Museum of Modern Art] (MAM/SP) on 9 December, 1952. Concise, the piece of writing listed space, chromatic and formal principles that, with unprecedented rigor in the history of the Brazilian art, addressed the issues of meaning and reach of the rupture proposed by its signatories. Nonetheless, the manifesto did not aim at clarifying specific topics of the aesthetic-formal rupture praised by the concrete artists from São Paulo – Waldemar Cordeiro, Anatol Wladyslaw (1913-2004), Geraldo de Barros (1923-1998), Kazmer Féjer (1923- 1989), Leopoldo Haar (1910-1954), Lothar Charoux (1912-1987) and Luiz Sacilotto (1924-2003). More political than theoretical, the Ruptura’s purpose was first to raise general issues that called attention to the debut of the group in a timid cultural context totally refractory to the renovation of artistic languages currently underway in the country. By the end of April 1949, on the occasion of the inauguration of the headquarters of the Sul América Terrestres, Marítimos e Acidentes (Satma), in Rio de Janeiro, the exhibition Do Figurativismo ao Abstracionismo1 [From Figurativism to Abstractionism] was held and two months earlier that same exhibition had inaugurated the Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP). Conceived and organized by Belgian critic Léon Degand (1907-1958), an admirer of abstractionism and first director of the MAM-SP, the exhibition caused controversy. The catalog of the exhibition in Rio de Janeiro was the insurer’s monthly newsletter itself containing several articles exposing the debate between

advocates of the renewed abstractionism and partisans of the figurative tradition, thus opposing the former. Among the articles against the renovation underway, the one titled Realismo e Abstracionismo [Realism and Abstractionism], by Di Cavalcanti (1897-1976), stood out for its violent rejection of abstract-concrete art that coincided with entrenched opinions not only in a considerable part of the intellectuals of the time, but also in common sense.

What I think is vital, though, is to dodge Abstractionism. The artwork of abstracionists like Kandinsky, Klee, Mondrian, Arp, Calder is a sterile specialization. These artists build a little world expanded, lost in each fragment of real things: they are monstrous visions of amoeban or atomic wastes revealed by microscopes of sick brains (DI CAVALCANTI, Realismo e abstracionismo. Satma Newsletter, Rio de Janeiro, n. 23, 1949, p. 47).

In this unfavorable context, the discourse underlying the release of the Grupo Ruptura’s manifesto in 1952, “far from constructing a theoretical treatise and even a historical study” (CORDEIRO, Waldemar. In: article Ruptura, see page 210), seemed then more concerned with listing and giving adjectives to the artistic opponents, based on the approach conceptually established between the old and the new, than clarifying the key principles underlying the proposed breakup. Listed in the manifesto, his opponents took part in trends, whose apparent modernity concealed incomprehension of newness as they produced “new forms of old principles.” Such trends comprised “all the varieties and hybridizations of naturalism; the mere negation of naturalism, that is, the ‘erroneous’ naturalism of children, mentally ill people, ‘primitives,’ expressionists, surrealists, etc. and the hedonistic non-figuration, a product of gratuitous taste, which seeks mere excitement of “pleasure or displeasure.” (2) Such simultaneity of trends – from various historical periods −, with which a single manifesto intended to break up at the time, revealed the limits of our early modernism that, unlike similar movements in the old continent, neither broke with the principles of classical art from the aesthetic or discursive standpoint nor created any -ism − something that conveyed a radical, unprecedented and unique sense to the rupture captained by Cordeiro. However, as soon as the impact of the show and of the manifesto became known to all, especially with regard to the critical objections directed to it, Waldemar Cordeiro went deeper into the theoretical and visual sense of the new art in his homonymous

article (Ruptura, [Rupture] see page 210), published in Correio Paulistano newspaper of 11 January, 1953. Even though the article aimed at dislocating the conservative speculations of Sérgio Milliet (1898-1966) regarding the manifesto and the exhibition of the group, his rationale eventually transcended the specific context of the counter to the São Paulo critic to define the general concept of rupture of the concrete-art painting. In a note published in O Estado de S. Paulo newspaper of 13 December, 1952, Milliet questioned if the idea of rupture was indeed applicable to art or was it just a rhetorical radicalism of the manifesto. In Cordeiro’s scathing response to Milliet’s note, the theoretical consistency of the former is strongly seen as well as the critical and wrecking power of his discursive strategy for which he was acclaimed as one of the greatest (if not the greatest) arguers of Brazilian art in the 1950s and 1960s. The importance of Ruptura was only limited to revealing a relentless artist and debater. The interest in that article resulted particularly in something less prosaic and more relevant: the beginning of Cordeiro’s journey toward the theoretical-methodological consolidation of his ideas, the poetic mastery of his working process and his political-discursive strategy. The response-article to Milliet became, for such reasons, an emblem of an unprecedented inflection in the Brazilian visual output and, concurrently, a privileged reference of conceptual and practical sense of the rupture desired under the new principles of concrete art and its echoes in the work by Waldemar Cordeiro in the 1950s.

The counterargument to the note of critic Milliet, which foreshadowed the method later adopted by Cordeiro in the controversy with Ferreira Gullar (1930), spokesman for concrete art in Rio de Janeiro, can be summarized as follows:

1) identification of the cornerstone of the idea giving the foundations for Milliet’s article: the theoretical and practical negation of ruptures in the context of art history;

2) a concise analysis of Milliet’s thought published about three months earlier in an article introducing Cícero Dias’s exhibition of paintings, in which the critic from São Paulo sought to demonstrate that the “Cícero Dias of the abstract canvases is no different from the artist we met painting naive still lifes and scenes from the Northeast. Those are the same greens and yellows from the past and the same shapes and compositions [...]”. This statement derived from the idea, disseminated by Milliet and by common sense, that art possessed permanent values and laws and was, therefore, contrary to ruptures;

3) explanation of the rupture with the figurative tradition by confronting the old principles of Renaissance naturalism and its subsequent developments with spatial, chromatic and rhythmic principles of the new painting. Cordeiro was diametrically opposed to the old principles of classical painting, based on the most radical principles of modern painting, in which two-dimensional spatial construction assumed the concreteness and integrity of the pictorial plane.

NEWNESS, RUPTURE AND MODERNIZATION

According to logic and dynamics − innovation/obsolescence/innovation ... −, established by technological development,

industrial production and the continued market expansion, the modern capitalist society revoked the former community appreciation for tradition (permanence, eternity) on behalf of a hitherto unprecedented value, which became dominant from the industrial revolution forward: the continuous search for newness in all areas of technological and economic production, in the theoretical and political practices and within the realm of the artistic production − which is of our direct interest here. Only in the bourgeois world the concept of rupture played a founding and operative role and turned into a powerful watershed of discourses opposing modernity and tradition. While the epicenter of the economic matrix (cutting the ties with the past promoted by the Industrial Revolution) was Great Britain and that of the philosophical revolution was in Germany, it was

up to France to establish the political-ideological foundation of the modern world through an exemplary and emblematic rupture represented by the French Revolution (1789). It was exclusively the new society, emerged from these principles and events, which also set out to examine its own origin by means of the social sciences and humanities (history, economics, psychology, anthropology and sociology, except the self-critical renewal of the ancient philosophy) arising from the momentum that in the 18th century had compared the secular thought and the dogmatic religious narratives about the creation of the world or about the mythical origin of different ethnic groups and communities. A starting point of the modern ideological-discursive repertoires, the concept of rupture (with the past) also ingrained in the new critical-speculative disciplines aimed at producing specific knowledge about man and their cultural and social life. As well as rooting of modernity – in the most diverse areas of thought, action and sensitivity – was operated out of rupture discourses, the new knowledge deriving from it – focused, therefore, not on the early modernity any longer, but on the dynamics (or dialectics) that would move it – abandoned the emphasis on the explicit founding rupture to privilege an analogous sphere, in which separations and polarizations, which may cause ruptures, became intellectual and normative assumptions of the discourses directed to the study of daily and historic flows. Among the best-known of these polarized separations are those established between: handicraft and mechanistic skills, crafts and industry, subject and object, science and opinion (the Bachelardian notion of epistemological cut, for example), public (citizen) and private (individual). It is also worth mentioning the class struggle and the consequent breakup represented by the Socialist Revolution (Marx); the opposition between city and countryside; the differentiations between nature and culture (founders of the first anthropological discourses); unconscious and reason (Freud); art and craft; art and life (autonomy of art); figuration and abstraction; tradition and renewal. Characterized by spatial, aesthetic-formal, chromatic and semantic ruptures, periodically proposed by the historical avant-gardes, the European pioneer experience − marked specifically but not exclusively by the French experience (School of Paris) − became a “universal paradigm” of modernism. Arising in Europe between late 19th century and the end of World War II, in the mid-twentieth century the avant-guard movements, although very different, shared a common key objective: the quest for permanent renovation of languages, the respect for controversial attitudes and positions – understood as tactics to spread their ideas − and the appreciation of a separation from the past. Its belated emergence in post-war Brazil confronted immediately with the Brazilian modernism, hegemonic at the time, and not only it mobilized the artistic-discursive activism of Waldemar Cordeiro, but it also guided his own work over the 1950s.

MODERN ALTERNATIVES TO THE EUROPEAN MODEL

Although the hegemony of the French-European paradigm eclipsed, until World War II many other examples of modernization, both in Latin American countries and in European and Asian countries, today it is possible to rethink the theoretical, artistic and political significance of these dissonant experiments of modernity thanks to the historical gap separating us from that period. The most successful of these experiences was the economic modernization of Japan deployed, without a political breakup, by visionary Emperor Meiji, whose reign extended over 45 years (1867-1912). During this period, the country managed to keep the imperial regime while carrying out the agrarian and industrial reforms by revolutionizing the traditional education processes. This was attained due to the extraordinary program to train Japanese technicians and scientists in England and the United States.

Contrasting with the Japanese process, the Brazilian historical context focused on a slow, gradual, but incomplete transition to modernity, particularly with regard to social inclusion and the universalization of citizenship. The sudden change from the Brazilian imperial regime (1822-1889) to the republican system, therefore, far from representing a break with the economic structure of the former regime, covered up the maintenance of the old order based on the exportation of agricultural products, which, rocked by the abolition of slavery (1888), found in the immigrant a replacement for slave labor:

Because immigration replaces slavery or even counters the latter owing to the introduction of wage labor, it should not be considered a process that deserves such sweet place in history as opposed to the bitterness of slavery [...]. Many farmers switched the people in their domains. They did not change their methods, though. Cases of beating were not uncommon, nor those in which the immigrants were lodged in the old slave quarters (TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da solidão: uma história de São Paulo das origens a 1900. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2003, p. 401-402).

There was, however, another group of immigrants different from the majoritarian contingent of those who came to Brazil to escape the misery. It was formed by a small number of foreigners, who, since the late 19th century, arrived here seeking opportunities arising from a booming economy. Some of them, mostly Italians, became prosperous traders and pioneers of industrialization in the capital city of São Paulo, the same destination to some powerful and traditional farmers in the region, who, at the same time, channeled part of their capital to the industry. The convergence of economic interests of wealthy immigrants and members of the old rural aristocracy gave rise to one of the first industrial centers in the country and meant a decisive step towards the sociocultural integration between Brazilians and immigrants.

A few decades were required, however, for many of those immigrants − trained to work in urban crafts, but contractually bound to work in the field − were widely and effectively absorbed by the breakneck urban growth of São Paulo and other few large cities of the country. At the end of World War II, the massive immigration cycle, which had been ongoing since the end of the 19th century, had already cooled. However, the end of the conflict and destruction of a considerable number of countries in the European continent prompted many of their technically-prepared professionals with a sociocultural profile similar to that of Waldemar Cordeiro to move to Brazil − even part of the artists of the Grupo Ruptura was formed by foreigners of this process.

POST-COLONIALISM AND DECONSTRUCTION OF EUROPEANAMERICAN PARADIGMS

Modernization processes effectively founded on the European paradigm of rupture were quite rare – exceptions and not

the rule −, chiefly if we consider the experiences of unfinished modernization initiatives in Latina America, Asia and Africa. Such evidence would be enough to question the concept and the value of a break as the sole criterion for the foundation of modernity. The criticism to the universalization of this model, though, was politicized as well by sectors of the national and international academia. Paths opened by the European post-Structuralism were later taken by intellectuals such as Arjun Appadurai (1949), Edward Said (1935-2003), Gayatri Spivak (1942), Homi K. Bhabha (1949) and Stuart Hall (1932-2014). Coming from periphery countries of the Middle East and Asia, they replaced the concept of Third World with that of Post-Colonialism. Connected to the cultural studies and the critical theory, these intellectuals could shape their thought − based on the